Dwight e a Máquina do Juízo Final
De todas as promessas vazias, essa foi de longe a mais destrutiva.
Andy: Hi guys. I just wanted to say that, you all have been doing amazing work., really.
Kevin: Thank you.
Andy: And I'd like to add that your work has been a little sloppy. So, Dwight and I have implemented a new program that we like to call...Dwight...
Dwight: The accountability booster. It registers every time a mistake has been made in the office. From a late delivery to an accounting error. Five strikes in a day equals a home run. One home run and you're out.
Andy: If we as a group make five mistakes in a day, something bad happens like we block Minesweeper.
Dwight: Or in this case an email gets sent to Robert California containing the consultants report from last year. Remember the one that recommended the branch be shutdown? And as a fail-safe also every negative email you've ever written about him to the group will also be forwarded to him.
Jim: Wait, so you installed a doomsday device?
Dwight: No, it's an accountability booster.
Jim: Which when it goes off it destroys everything. Very similar to a doomsday device.
The Office 08x06 – Doomsday
Nesse episódio do “The Office”, Andy Bernard foi pressionado pelo CEO da empresa a minimizar os erros da filial do qual Andy era gerente regional. Preocupado, ele decide acatar uma sugestão de Dwight Schrute para resolver problema. O empregado da Dunder Mifflin apresenta sua solução: The Accountability Booster. O sistema automatiza implementação de uma punição em caso de uma sucessão de erros. Se cinco erros forem cometidos em um único dia, uma punição coletiva é implementada. No caso, a punição é dramática e provavelmente implicaria na demissão de boa parte dos funcionários ou até mesmo o fechamento da filial.
O sistema proposto por Dwight tem uma lógica simples: a certeza de um castigo suficientemente alto pode dissuadir delitos ou, no caso em questão, comportamentos displicentes. A eficácia da dissuasão, por sua vez, depende de dois elementos: Tamanho da punição e probabilidade de adimplemento dela. Intuitivamente, quanto maior a punição, tudo o mais constante, maior deveria ser a preocupação em não cometer infrações. No entanto, a simples promessa de punição, por maior que seja, deve ser crível, ou seja, o potencial infrator deve atribuir uma probabilidade suficiente de que a pena será implementada. É aí que a coisa fica interessante.
Punição e Credibilidade
Do ponto de vista prático, parece existir uma troca entre o tamanho da punição e a credibilidade de que ela será adimplida. Para ilustrar esse dilema, pense na situação de uma mãe que ameaça o filho de proibi-lo de tomar sorvete durante uma semana se ele não fizer a lição de casa. Agora, compare essa punição com uma ameaça que ele ficará sem sorvete durante cinco anos. Certamente a última punição é mais severa que a primeira e, sob esse prisma, ela poderia ter um efeito maior de dissuasão. No entanto, qual das duas parece à primeira vista mais crível de ser cumprida? Certamente a primeira e não a última. Afinal, o cumprimento da pena depende da disposição e vontade da mãe adimplir durante cinco anos uma proibição. É razoável imaginar que em algum momento do tempo, a mãe “anistiaria” seu filho.
O contrário de punições severas e pouco críveis é a punição fraca e altamente crível. Por exemplo, a mãe pode proibir o filho de tomar sorvete por 15 minutos. Nesse caso, é provável que, embora a expectativa de punição seja alta, a pena não seja suficiente para impedir o filho de jogar videogame ao invés de fazer o dever de casa. Ou seja, mesmo sendo crível, a pena não dissuade o mau comportamento. O problema permanece.
Uma alternativa às duas abordagens é um esquema de punição incremental. Na primeira vez que o filho não faz o dever de casa, a mãe o deixa sem sorvete por um dia. Na segunda vez, ele fica sem sorvete por dois e assim por diante. Eventualmente, o filho concluirá que preço de não fazer o dever de casa mais uma vez é caro demais e então a dissuasão passará a ocorrer. O problema dessa abordagem é que ela implicaria em muitas lições de casa não feitas, até que o custo não seja tolerável para a criança. Esse sistema de punição é ineficiente. Seria mais eficiente encontrar a punição cujo tamanho seja suficiente para dissuadir o moleque. Claro, essa punição precisa ser combinada com uma credibilidade igualmente suficiente. Ou seja, voltamos ao problema original.
É aí que entra a sofisticação do plano do (gerente regional) assistente ao gerente regional. A credibilidade da punição dramática proposta por ele – que provavelmente implicaria na sua própria demissão – é garantida pelo caráter automático da pena. Ou seja, ela está previamente programada e, portanto, não depende da discricionaridade humana.
The Office e a Guerra Fria
Local defense will always be important. But there is no local defense which alone will contain the mighty land power of the Communist world. Local defenses must be reinforced by the further deterrent of massive retaliatory power. A potential aggressor must know that he cannot always prescribe battle conditions that suit him. Otherwise, for example, a potential aggressor, who is glutted with manpower, might be tempted to attack in confidence that resistance would be confined to manpower. He might be tempted to attack in places where his superiority was decisive.
The way to deter aggression is for the free community to be willing and able to respond vigorously at places and with means of its own choosing.
Discurso de John Foster Dulles, “On the Need for Long-Range Policies”, 12 de Janeiro, 1954
Esse episódio do The Office faz uma piada com um assunto que foi discutido a exaustão durante boa parte do século XX. A lógica da geopolítica mundial durante a Guerra Fria esteve alicerçada na destruição mútua assegurada da União Soviética e dos Estados Unidos. O que impediu a guerra “quente” entre as duas superpotências foi a certeza de que, em caso de conflito, ambas as nações teriam a capacidade e a disposição de se destruírem mutuamente.
Em tese, a destruição mútua assegurou não apenas a inexistência de uma guerra nuclear, mas também a inexistência de um conflito de menor escala entre os países e seus aliados. Historicamente, é possível apontar o ano de 1954 como aquele em que os EUA introduziram no cenário político mundial a sua versão do “Accountability Booster”. A doutrina Duller-Eisenhower buscava intimidar e dissuadir o adversário por meio da promessa de “enorme poder de retaliação” em caso de ataque - por menor que ele fosse - ao território americano ou a Europa ocidental. Implícito nessa promessa estava o uso de armas nucleares. Se, por exemplo, a URSS invadisse Berlim Ocidental (talvez o alvo mais vulnerável na época), os EUA não responderiam apenas invadindo a Polônia ou algum outro país. A resposta seria guerra total contra URSS, incluindo a utilização de armas nucleares no território soviético. Em outras palavras, o contra-ataque não estava circunscrito ao local do ataque inicial.
A punição prometida pelo presidente americano seria altíssima e não incremental e local como intuitivamente poderia fazer mais sentido. Ao contrário da mãe que gradativamente aumenta os dias sem sorvetes da criança indisciplinada, Eisenhower queria evitar qualquer conflito por menor que fosse prometendo a destruição completa do inimigo. No entanto, assim como a mãe que ameaçava tirar o sorvete por cinco anos sofre de credibilidade, a doutrina iniciada por Eisenhower também sofria do mesmo problema. O mundo inteiro se questionaria durante todo o período da Guerra Fria: a conquista de uma cidade por parte de um dos lados do conflito vale um holocausto nuclear? Eis o paradoxo: A dúvida razoável sobre o comprometimento de um dos lados para com a promessa de guerra total poderia justamente levar a uma guerra total.
A Credibilidade da Máquina do Juízo Final
No final da cena do começo deste texto, Jim menciona ao Dwight que, na verdade, o que ele criou foi uma “Máquina do Juízo Final”. O que é isso? A máquina seria uma forma de garantir o adimplemento da política de retaliação massiva em caso de ataques. Assim como o sistema do Dwight (o Schrute, não o Eisenhower) garante uma resposta automática em caso de o gatilho de erros ser ativado, a máquina também estaria programada de antemão para disparar os mísseis nucleares nos alvos designados. Uma vez publicamente anunciada1 , a máquina coloca o "medo no coração" do adversário e a certeza acima de dúvida razoável de que o oponente "está de mãos atadas" e responderá de forma absolutamente avassaladora em caso de ataques (pequenos ou grandes).
A única diferença entre o sistema desenvolvido pelo Dwight e a máquina é que, em princípio, a segunda deve ser impossível de ser cancelada, como bem nos informa o doutor no filme clássico sobre o assunto:
Muffley: But, how is it possible for this thing to be triggered automatically, and at the same time impossible to untrigger?
Strangelove: Mr. President, it is not only possible, it is essential. That is the whole idea of this machine, you know. Deterrence is the art of producing in the mind of the enemy... the fear to attack. And so, because of the automated and irrevocable decision making process which rules out human meddling, the doomsday machine is terrifying. It's simple to understand. And completely credible, and convincing.
Dr. Strangelove: or, How I learned to stop worrying and love the bomb
O anúncio público da existência da máquina e a certeza de que sua programação não pode ser cancelada é o que garante a dissuasão responsável pela paz.
A defesa da Europa ocidental vale Nova Iorque? E defesa do leste europeu?
Curiosamente, embora seja evidente que essa máquina nunca existiu (era apenas um exercício teórico), a Guerra Fria nunca resultou em um conflito militar direto entre as duas superpotências. O motivo dessa “paz”2 é objeto de estudo até hoje. Uma possível explicação é que talvez nunca tenha havido uma dúvida razoável de que um dos lados não iria retaliar com uma guerra total em caso de ataques localizados. Talvez fosse verdade que o compromisso dos EUA com a defesa da Europa ocidental fosse grande o suficiente para arriscar seus próprios estados.
O conflito na Ucrânia entre esse país e a Rússia reascenderam o debate sobre a doutrina da “retaliação massiva”. Diversos países pertencentes a OTAN estão auxiliando indiretamente o lado ucraniano. O que aconteceria se a Rússia atacasse um deles como “retaliação”? Até onde os americanos estariam dispostos a ir em defesa de países da Europa oriental? O mundo todo prendeu a respiração por algumas horas quando mísseis caíram em território polonês. Por breves instantes, pareceu que a convicção americana seria testada e com ela uma doutrina que, goste dela ou não, pode ter salvado o mundo de um conflito mundial no século passado.
E é algo fundamental que ela seja anunciada, como nos lembra um famoso doutor:
“Strangelove: Yes, but the... whole point of the doomsday machine... is lost... if you keep it a secret! Why didn't you tell the world, eh?” (Dr. Strangelove: or, How I learned to stop worrying and love the bomb)
A paz é entre aspas, é claro. Durante a Guerra Fria existiram diversas guerras que se inseriam no conflito geopolítico, embora não envolvessem diretamente as duas superpotências simultaneamente.