“Michael Francis Rizzi, você renuncia a Satanás?”
“Eu renuncio a ele”. Essa foi a resposta que Michael deu ao sacerdote na cerimônia de batismo do seu sobrinho. A criança era filho da irmã de Michael, Conie Rizzi, e ele havia sido escolhido como padrinho. O batizado, em O Poderoso Chefão, é uma das cenas mais icônicas do cinema. Nela, o diretor do filme, Francis Ford Coppola, deixou muito claro até para o espectador mais desatento o paralelo que ele queria traçar. No mesmo momento do batizado da criança, em que Michael assumiu o papel de padrinho, seu primeiro plano como chefe (ou Padrinho) da família Corleone estava sendo deflagrado.
As cenas do batismo religioso eram intercaladas com cenas brutais de assassinatos dos conspiradores Moe Green, Philip Tataglia, Emilio Barzini e Tessio, os quais queriam aproveitar a morte de Don Vito para acabar com a família Corleone. Os assassinatos representavam a imersão definitiva do herói de guerra na nova vida de crime. Enquanto seu sobrinho era imerso em água, Michael era imerso no sangue que ele mesmo derramava.
A origem da palavra batismo remete a imersão. A imersão limpa e dá uma nova vida àquele que foi batizado. Na tradição católica, a purificação do batismo comunica o dom sobrenatural dado ao homem por Deus. Esse presente é a capacidade de não apenas reconhecer, mas também de fazer parte da vida de Deus.
Segundo a filosofia clássica, o homem é um animal racional, dotado de vontade e intelecto. Nessa mesma tradição, a finalidade natural do homem deve ser, portanto, conhecer a verdade e querer o bem. A Verdade e o Bem, em última instância, são Deus. É próprio da natureza do homem, portanto, buscar essa Verdade e querer esse Bem. Esse é o sentido da vida de todos nós.
Embora pela natureza humana, aspectos de Deus até possam ser conhecidos através da razão, esse conhecimento é muito limitado. Uma analogia útil para entender essa limitação é pensar que o nosso conhecimento sobre o transcendente é como o conhecimento que uma criança tem a respeito do pai que partiu para guerra antes de ela nascer. A criança compreende através da razão que ela tem um pai. Além disso, ao conviver com sua mãe e ao estudar os pertences do seu pai, ela pode querer agir segundo ele ordenou. No entanto, isso não é a mesma coisa que estar com ele.
A Graça é o elemento sobrenatural – além das habilidades naturais do homem – que lhe permite participar da vida de Deus. No Jardim do Éden, o homem tinha esse dom naturalmente e, portanto, caminhava com Deus — o menino estava na presença de seu pai. Depois da queda, esse vínculo foi rompido. Infelizmente, como explica Leo Trese, os filhos, netos e bisnetos de um bilionário que desperdiçou sua fortuna acabam também sendo afetados por esse erro. Todos nós nascemos, portanto, com o pecado original: a consequência da quebra de confiança entre Criador e criatura, que levou ao decaimento da nossa natureza.
A boa notícia é que, no sacramento do batismo, a criança recebe a Graça. Ela é um presente que Deus concedeu aos homens para que possam novamente viver junto dele. Esse vínculo é restaurado no batismo graças à vida, paixão, morte e ressureição de Cristo. Se antes o homem era um copo vazio, após o batismo o copo está novamente cheio. A criança pode não só conhecer aspectos do pai que estava na guerra, como também pode abraçá-lo.
Além do batismo, a trilogia inteira de O Poderoso Chefão é repleta de sacramentos católicos. O casamento de Conie e o batizado de seu filho na primeira parte, a primeira comunhão de Anthony Corleone na segunda e a malsucedida confissão de Michael na terceira e última parte. Embora isso não seja necessariamente surpreendente — afinal de contas a trilogia conta a trajetória de uma família italiana — há quem diga que Mario Puzo e Francis Coppola queriam mostrar a hipocrisia da Igreja e dos católicos. Se isso é verdade, eu não sei. O que podemos ter certeza é que, em caso afirmativo, vale aqui a máxima de Sócrates: em geral, os artistas não fazem a menor ideia do significado último de suas obras. Eu vou explicar o motivo.
O leitor atento percebeu que a pergunta transcrita no começo de texto, embora tenha sido respondida por Michael Corleone, era dirigida a Michael Francis Rizzi. Michael Rizzi, homônimo do chefe da máfia Corleone, era a criança que estava sendo batizada. Antigamente, no rito do batismo, o padre se dirigia ao bebê em questão, mas, por motivos óbvios, quem respondia eram os padrinhos. Michael Corleone estava, portanto, renunciando a Satanás em nome de seu afilhado. Enquanto o padrinho estava sendo imerso no pecado, seu afiliado homônimo estava sendo limpo dele. Havia ali dois Michaels: um na estrada para perdição e outro no caminho da redenção.
Acontece, caro leitor, que você, mesmo que seja fã da trilogia, provavelmente nunca deve ter ouvido falar de Michael Francis Rizzi, exceto na cena do batismo. Isso porque o menino nunca entrou nos negócios da família. O batismo pela água benta — o sacramento — retratado no primeiro filme livrou o menino do destino de seus parentes. “Little Michael” (Pequeno Michael), como era conhecido, ficou limpo do pecado original da família Corleone. O sacramento, portanto, foi duplamente eficaz.
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PS: Agradeço ao amigo e prof. Dr. Marcos Paulo Fernandes de Araújo por me impedir de incorrer em erros e heresias na elaboração desse texto.