A Teoria das Crenças de Luxo
Eu gosto das minhas crenças como eu gosto dos meus bifes: mal passadas e folheadas a ouro.
Por que alguém iria comer uma carne folheada a ouro? Ou melhor, por que alguém iria pagar para comer um prato desses? Essa é a pergunta que muitos de nós fizemos ao saber que uma das atrações do Catar era esse tipo de culinária exótica. Durante a Copa do Mundo naquele país, diversos jogadores futebol experimentaram a iguaria. Eu li que o prato custa aproximadamente nove mil reais. Me chamem de grosseiro, mas eu não acredito que exista grande genialidade gastronômica em folhear uma carne com ouro. Tudo isso é um exagero e, para falar bem a verdade, exagero e extravagância me parecem ser justamente o ponto dessa carne (no pun intented). O prato do excêntrico chef Nusret Gökçe se enquadra perfeitamente no que, há mais de cem anos atrás, o sociólogo Thorstein Veblen classificou como consumo conspícuo.
Em resumo, a lógica do consumo conspícuo, ou “ostentatório”, é sinalizar riqueza. Além da satisfação de consumir bens e serviços, sabemos que os indivíduos desejam possuir também atributos “intangíveis”. Honra e fama são exemplos. Milhões de pessoas interagem nas redes sociais, expondo sua vida privada ou produzindo algum tipo de conteúdo apenas com o propósito de ganhar fama. Quanto maior a fama, maior seu status dentro de um círculo social relevante. Uma grande riqueza também pode ser um jeito de mostrar seu status social. Um jeito de sinalizar riqueza mais sofisticado do que “andar com seu extrato bancário colado na testa” é adquirir bens e serviços caríssimos, cujo principal valor é apenas o fato de serem caros. E, nesse caso, eu diria que não existe uma maneira mais direta e clara de fazer isso do que pagar por uma refeição literalmente folheada a ouro. Afinal, o leitor é um ser humano e, como tal, sabe que tudo que é ingerido (e digerido) terá um destino último muito claro. O prato sugere que o sujeito é tão rico que… bem… você entendeu.
Carros de luxo, canetas Montblanc, malas Louis Vuitton e a carruagem de zebra de Lionel Rothschild também se encaixam nessa categoria. Elas carregam um valor que supera a simples utilidade imediata do bem. São produtos associados a exclusividade e, na medida em que são exclusivos, também são caros. Como apenas pessoas com alto status social têm riqueza suficiente para cometer essas extravagâncias, a mera posse do objeto já informa algo sobre seu proprietário. Ela separa as pessoas de “alto” status das pessoas de “baixo” status social, ou pelo menos essa é a ideia.
O problema é que, pelo menos no Brasil, os atletas brasileiros que consumiram a carne folheada a ouro foram muito criticados. Nesse caso em particular, o consumo conspícuo não atingiu o objetivo desejado. O prestígio e status dos jogadores não foi elevado. Assim como em outras ocasiões recentes, numerosas demais para citar aqui, a ostentação de bens e serviços caros foi alvo de críticas por uma parte considerável do público. O mundo da sinalização de status parece ter mudado1. O que está acontecendo?
Ostentação material é tão século XIX, não é mesmo?
Rob Henderson é doutor em psicologia por Oxford, articulista para grandes jornais e autor de um excelente Substack com milhares de inscritos (o qual, por sinal, eu recomendo). Ele ganhou notoriedade com um artigo no qual ele apresenta ao mundo sua teoria sociológica chamada “Crenças de Luxo”. Trata-se de um conceito simétrico ao conceito de bens de luxo associados ao consumo conspícuo de Veblen. O próprio Henderson explica:
“No passado, os americanos de classe alta costumavam exibir seu status social com bens de luxo. Hoje, eles fazem isso com crenças de luxo.”
O primeiro exemplo de crenças de luxo dado por Henderson são aquelas sobre a “estrutura familiar”:
“Um exemplo de crença de luxo é a de que todas as estruturas familiares são iguais. Isso não é verdade. Os indícios são claros de que famílias com dois pais casados são as mais benéficas para crianças pequenas. E, no entanto, pessoas ricas e instruídas criadas por pais casados são mais propensas do que as demais a acreditar que a monogamia está ultrapassada, que o casamento é uma farsa ou que todas as famílias são iguais.”
Segundo Henderson, crenças “mais liberais" sobre casamento são mais comum nas classes sociais mais abastadas. Em particular, esse tipo de crença também é dominante entre figuras da mídia e frequentemente aparece em programas e shows de televisão. Há um certo "ar de cultura" e "progressismo" associado a ela. Por outro lado, ideias e crenças que reconhecem a importância de uma família estruturada são vistas como “caipiras”, ou seja, associadas a um pensamento de pessoas de "baixo status social". Por quê? Qual o mecanismo que está em funcionamento?
Para o autor, a lógica das crenças de luxo é a mesma dos bens de luxo. Assim como chapéus extravagantes de estilistas famosos, as crenças de luxo são algo que apenas ricos poderiam colocar em suas cabeças. O motivo é simples: são crenças cujos desdobramentos negativos terão pouco ou nenhum impacto sobre as pessoas ricas. Os efeitos negativos só são caros demais para pessoas pobres. Ou seja, a elite é suficientemente rica para “pagar por essas crenças”.
O exemplo da crença sobre estrutura familiar é muito ilustrativo. Os ricos podem defender que o casamento é uma instituição ultrapassada e que não existe um jeito melhor ou pior de estruturar uma família. Eles são ricos, ora bolas. A riqueza deles pode absorver qualquer imprevisto ou “choque” negativo. Uma gravidez fora de um casamento, por exemplo, pode ser muito mais facilmente administrada se você tem recursos. Dinheiro compra fraldas, babás em tempo integral e boas escolas. Por outro lado, se você é pobre, uma gravidez sem uma estrutura familiar pode prejudicar enormemente as pessoas diretamente envolvidas.
Outro exemplo interessante utilizado por Rob Henderson é a opinião de que "a polícia deveria ser abolida". Esta proposta radical e um tanto absurda ganhou destaque nos Estados Unidos durante os protestos contra a violência policial em 2020. A opinião de que a polícia deveria acabar era desproporcionalmente popular entre a elite americana2. Novamente, apenas pessoas muito ricas poderiam se dar ao luxo de propagar essa ideia, afinal, elas moram em bairros com densidade populacional relativamente baixa e podem pagar por segurança privada. A falta de policiamento raramente foi um problema para elas. A violência urbana é um fenômeno mais presente em comunidades de renda mais baixa e afeta diretamente, por exemplo, pequenos comerciantes. A falta de policiamento, na medida em que encoraja a prática de crimes, torna os bairros mais violentos lugares inóspitos para empresários, deprime o valor das propriedades e reduz as oportunidades de emprego locais. Os efeitos combinados acabam condenando aquela região à pobreza.
Crenças de luxo são importantes
O efeito deletério das crenças de luxo é que, ao propagá-las através dos meios culturais (academia, mídia de entretenimento e escolas), a elite acaba enfraquecendo normas sociais as quais, embora longe de serem perfeitas, potencialmente desempenhavam funções importantes para a sociedade. A estrutura familiar e a garantia da lei da ordem, por exemplo, são importantes justamente para os indivíduos que não possuem recursos suficientes para absorver choques dessas naturezas. Bairros mais pobres e pequenos empresários sofrem com a criminalidade, e filhos de mães solteira têm, tudo o mais constante, maiores problemas em diversas áreas da vida. É nesses termos que Rob Henderson define o conceito:
“Crenças de Luxo são ideias e opiniões que conferem status aos ricos, enquanto cobram um preço alto da classe baixa.”
Opiniões “liberais” sobre, por exemplo, policiamento, casamento tradicional, imigração3 e o papel que o mérito tem no desempenho profissional4 conferem status àqueles que as proferem publicamente5. O custo da propagação delas, no entanto, é alto apenas para famílias e pessoas pobres, pois os indivíduos mais abastados podem tranquilamente se proteger das suas consequências negativas6. Esses dois fatos combinados fazem com que a crença de luxo atue da mesma forma que bens de luxo: São sinais que separam ricos de pobres, ou alto status de baixo status social.
Problemas com a teoria: Crenças são bens não rivais e não excludentes.
A tese de Rob Henderson é interessante e parece descrever um fenômeno social real. O conjunto de crenças “liberais” parece ser realmente mais comum entre as elites, principalmente mais jovens e escolarizadas, e parecem estar positivamente associadas a um maior status social (uma turma mais chique, mais esclarecida e elegante). Além disso, as potenciais repercussões negativas dessas crenças de fato parecem que afetar desproporcionalmente os mais pobres. Há, portanto, um claro incentivo para que os ricos as defendam como forma de sinalizar sua posição social, separando-se dos demais.
No entanto, parece-me que a similaridade entre bens e crenças de luxo não é total. Há uma diferença essencial na natureza destes objetos. Bens de luxo como BMWs, Ferraris e Montblancs são bens privados. Pessoas que não podem pagar por uma Ferrari nunca vão conseguir ter uma em suas garagens. Além disso, enquanto o dono dela a estiver usando, ninguém mais conseguirá pilotá-la, afinal só existe um assento de motorista. Ou seja, ela é um bem excludente e rival (você pode aprender mais sobre os quatro tipos de bens na nota de rodapé número sete7). O mesmo raciocínio não é válido para crenças, sejam elas de luxo ou não.
Crenças sobre policiamento ou casamento são bens públicos. É impossível excluir outras pessoas de terem essas crenças e, além disso, elas não “gastam”, ou seja, você e eu podemos ter exatamente a mesma crença, ao mesmo tempo, sem problema algum. Portanto, nada impede que pessoas “de fora da elite” professem publicamente essas mesmas crenças com o intuito de sinalizar um status que não possuem. O único desincentivo a fazer isso é um tanto abstrato e indireto: consequências potencialmente negativas que a propagação dessas crenças terão na sociedade, as quais afetarão desproporcionalmente as pessoas “de fora da elite”. A questão é saber se esse desincentivo é suficientemente forte para dissuadi-las de tentarem se disfarçar de “ricas”. Em outras palavras, será que esse desincentivo é alto o bastante para que “defender crenças de luxo” seja um sinal informativo sobre o status social e riqueza? Se ele não for alto o bastante, pessoas “de fora da elite” vão defender essas crenças e, ao fazerem isso, tais crenças perdem o efeito sinalizador.
No curto e médio prazo, até pode ser que esse custo seja alto o bastante para sinalizar status. No entanto, gradativamente, essas ideias vão sendo difundidas entre as pessoas que não fazem parte da “elite”. Assim como uma bolsa da Louis Vuitton falsificada, elas podem tentar emular essas crenças liberais sobre a organização da sociedade. É muito provável que isso aconteça, pois, do ponto de vista individual, o efeito negativo de “apenas você” defender essas ideias publicamente é muito pequeno (sua influência individual sobre as normas sociais é ínfimo). Portanto, o seu benefício de sinalizar status supera o custo. Em essência, podemos interpretar as normas sociais como bens comuns de nossa civilização. Como todo bem comum, elas estão a mercê do comportamento oportunista: “se eu não ‘tuitar’ essa crença bonita na forma de uma hashtag agora, outra pessoa vai fazer no meu lugar e vai aproveitar o sinal, então é melhor eu fazer.”. Com isso, paulatinamente, normas sociais potencialmente importantes vão sendo destruídas, assim como as pastagens e locais de pescas comuns.
A boa notícia é que esse processo de popularização das crenças acaba destruindo o seu poder de sinalização. Dessa forma, as elites vão gradativamente perdendo interesse em propagá-las pelos meios culturais. Em outras palavras, “elas vão saindo de moda”. A questão saber o que virá primeiro: o abandono dessas ideias ou a erosão total das normas sociais que elas visavam atacar?
Eis aí uma pergunta folheada a ouro.
Basta imaginar com seria o feed do Warren Buffet se ele andasse com uma carruagem movida a zebras no Central Park.
Ver slide treze dessa apresentação.
Outra ideia comum entre esse grupo de pessoas é a defesa da eliminação total de barreiras migratórias entre os países. Essa é uma ideia radical que também é defendida por muitos economistas. Para uma versão não politicamente correta do assunto, leiam We Wanted Workers: Unraveling the Immigration Narrative. Aqui, novamente, vigora a definição de Henderson: pessoas ricas são as menos afetadas com os efeitos negativos que uma migração totalmente desordenada pode gerar na sociedade. No entanto, elas ganham status social ao defender essa ideia.
Há uma crítica disseminada no meio acadêmico e midiático (povoado, na sua grande maioria, por pessoas abastadas) de que o esforço pessoal não é o que determina sucesso na vida. Henderson faz referência ao trabalho de Daniels e Wang (2019) para evidenciar que essa crença é mais comum entre os indivíduos de renda mais alta. Ricos já colocam seus filhos nas melhores escolas e oferecem todas as condições para eles tenham bons prospectos na vida. A noção de mérito, ética do trabalho e esforço individual é justamente mais importante nas comunidades e famílias de mais baixa renda, onde as condições iniciais são piores. A erosão desses conceitos, portanto, prejudica desproporcionalmente os mais pobres.
Crenças de luxo são majoritariamente associadas a valores “liberais”. Uma questão interessante é saber a razão disso. Curiosamente, segundo Mary Hirschfeld (e Santo Tomás de Aquino), existem duas virtudes que requerem riqueza para serem exercidas: Liberalidade e Magnificência. A liberalidade é a virtude de conceder “presentes” (gifts) para as pessoas. É algo diferente de “dar esmola”, pois, segundo a autora, a primeira está relacionada a relação que você tem com as outras pessoas, já a segunda diz respeito a suprir uma necessidade do próximo. Grosso modo, a liberalidade significa dar presentes, como, por exemplo, presentes aos nossos amigos. Quanto maior a riqueza, mais liberalidade deveríamos ter. A virtude da liberalidade, portanto, é um valor próprio da aristocracia, da elite.
Em certo sentido, podemos interpretar crenças e valores “liberais” como presentes. São presentes na forma de tolerância e generosidade que uma sociedade concede a grupos ou indivíduos específicos. As crenças de luxo sobre casamento, por exemplo, talvez se originem de um desejo de “não julgar” ou “não ofender” uma pessoa em particular. É uma espécie de concessão que o sujeito faz para alguém com que ele deseja fazer amizade. Isso é particularmente evidente em ambientes acadêmicos onde um dos objetivos principais é fazer a outra pessoa se “sentir bem”. Por melhor que sejam as intenções, no entanto, o uso desordenado dessa liberalidade pode provocar uma erosão de normas sociais importantes, principalmente para as pessoas mais pobres. Aqui, escondida numa simples nota de rodapé, está o que me parece ser a raiz do problema: O cultivo e sinalização da virtude da liberalidade, próprio das classes mais altas, gera uma externalidade negativa para a sociedade com um todo. A elite não internaliza esse custo justamente pelo fato de ser elite.
Nassim Taleb diria que os ricos, ao propagar tais crenças, não têm skin in the game (em bom português: não estão com o deles na reta). E é justamente esse o ponto. A sua despreocupação em propor ideias estapafúrdias, porém “bonitas”, é justamente o que sinaliza o seu status e, portanto, é o que motiva a sua decisão de propô-las publicamente.
Existem quatro tipos de bens: privados, públicos, comuns e do tipo “clubes”. O que determina o tipo de um bem é o grau de exclusividade e rivalidade que ele possui. Garrafas d’água são bens privados, pois é fácil impedir que pessoas que não pagaram por ela a consumam (exclusividade) e, se eu estou tomando a água, você não consegue tomá-la (rivalidade). Show de fogos de artifício em Copacabana é um bem público: não tem como impedir ninguém de assistir aos fogos (não exclusividade) e se eu estiver na praia assistindo, isso não te impede de ficar do meu lado e assistir também (não rivalidade). Peixes em um rio é um bem comum, pois, embora seja difícil excluir pessoas de pescar no rio (não exclusividade), o peixe que eu pesquei é meu e você não pode consumi-lo (rivalidade). Por fim, existem os clubes. Pense na sua televisão por assinatura e, em particular, o pay-per-view do Brasileirão: Fácil de excluir as pessoas de consumir (exclusividade), mas, se você colocar a televisão no bar da esquina, a rua inteira vai poder assistir (não rivalidade) — até alguém fazer uma denúncia para a empresa de televisão, claro.
Seu texto é muito bom, mas tem algo que discordo: O "custo" das crenças de luxo fica mais forte a medida que as normas sociais vão pro ralo e a sociedade desestabiliza. As crenças de luxo só são sustentadas a longo prazo, é como uma prova de resistência, quando menos condições você tem de sustentar essa crença mais rápida ela cairá, e progressivamente só aqueles que tem reais condições de sustentá-las é que as sustentarão. A popularização das crenças de luxo aconteceria mais no começo e não ao longo do tempo. Ao longo do tempo eles ganhariam valor.