As Lições de Bedford Falls
Contrafactuais, corridas bancárias e a economia civil de Frank Capra
Como seria o mundo se você nunca tivesse nascido? Esse é o exercício imaginativo que o clássico natalino It’s a Wonderful Life propõe ao espectador. O filme de 1946 faz parte da história do cinema mundial e talvez tenha sido o primeiro dos muitos filmes americanos que fazem especulações similares1. O fascínio que temos sobre esse assunto não é gratuito. Imaginar cenários contrafactuais (situações que não aconteceram, mas que poderiam ter acontecido) é o que fazemos diariamente na hora de tomar decisões. Afinal, esses cenários estão implícitos em todas nossas crenças sobre relações de causa e efeito no mundo em que vivemos. Sem uma intuição básica dessa relação seríamos incapazes de agir2 racionalmente.
Grosso modo, “algo” é a causa de “alguma coisa” quando, se esse “algo” não tivesse acontecido, então essa “alguma coisa” também não teria acontecido. Embora a definição seja simples, encontrar relações de causa e efeito é mais difícil do que imaginamos. Em um livro do filósofo e cientista da computação Judea Pearl, há uma citação atribuída a Demócrito que ilustra esse ponto:
“Prefiro descobrir uma única lei causal a ser rei da Pérsia!”
O filósofo pré-socrático julgava que o conhecimento de uma lei causal apenas já é uma raridade maior do que possuir um reino inteiro. Em outras palavras, não é todo dia que você encontra uma “lei causal” ali na esquina.
Não é apenas Demócrito que parece ter entendido a dificuldade. O filme dirigido por Frank Capra também nos dá essa e outras lições, como logo veremos.
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Curiosamente, um dos filmes natalinos mais marcantes de todos os tempos começa com uma “força tarefa” para impedir que o protagonista, George Bailey, tire sua própria vida. Seguindo a tradição católica do diretor e roteirista, as primeiras cenas de It’s a Wonderful Life mostram amigos e familiares rezando e pedindo a Deus para que Ele ajude o pai de família desesperado. As preces são ouvidas e a “administração celestial” atribui ao anjo da guarda de Bailey, Clarence, a missão de salvá-lo. Em seguida, o anjo e os espectadores começam a aprender um pouco mais sobre a vida desse homem que está prestes a pular de uma ponte.
As frustrações da juventude
George Bailey nasceu uma pequena cidade chamada Bedford Falls. Logo quando criança, nosso protagonista teve muito azar. Seu irmão mais novo, Harry, quase teria morrido afogado ao cair em um rio congelado, se não tivesse sido salvo pelo próprio George. O resgate do irmão, no entanto, custou a audição de um dos ouvidos de Bailey, devido a uma infecção contraída durante o salvamento na água congelante. Essa perda da audição tiraria dele o privilégio de lutar no front da II Guerra Mundial. Enquanto George fazia tarefas banais para o esforço de guerra na própria cidadezinha, seu irmão Harry se tornaria um grande piloto da marinha e herói de guerra.
O grande sonho de George era viajar pelo mundo, estudar arquitetura na universidade e projetar prédios e cidades modernas. No entanto, esse sonho foi postergado indefinidamente quando seu pai, Peter Bailey, teve um derrame e coube ao filho assumir administração do negócio da família, o Bailey Brothers Building and Loan. O negócio, na verdade, era uma associação financeira típica da época, cuja finalidade era financiar hipotecas e construção de casas a partir de depósitos individuais dos moradores da cidade. Nosso protagonista fez esse sacrifício, pois alternativa seria deixar a empresa para um dos membros da diretoria, Henry F. Potter — “o homem mais rico do condado” — e isso implicaria uma mudança radical da política da empresa. O senhor Potter, um homem frio, pressionava Peter Bailey a executar as hipotecas dos devedores com atrasos. O pai de George, por outro lado, tinha maior leniência com atrasos, procurando conhecê-los caso a caso.
As frustrações da vida adulta
Condenado a uma vida provinciana na cidade em que nascera, Bailey ao menos conheceu ali o amor da sua vida, Mary Hatch, com a qual se casou. Enfim, o desejo de sair da cidade, viajar e conhecer outros lugares poderia ser parcialmente realizado na lua de mel. Infelizmente, mesmo essa pequena realização seria frustrada. Já no táxi, literalmente prestes a iniciar a viagem com a esposa, Bailey se depara com um novo problema. O próprio taxista e seu amigo, Ernie, que faz o alerta : “Não olhe agora, mas há algo engraçado acontecendo lá no banco, George, eu realmente nunca vi uma, mas isso tem todas as marcas de uma corrida.” Isso mesmo, naquele exato momento estava acontecendo uma corrida bancária em Bedford Falls.
Caso o leitor não saiba, bancos são instituições que transformam ativos de longo prazo e com baixa liquidez (aquele empréstimo para um amigo seu fazer uma petshop) em recursos líquidos para seus clientes (grana na conta corrente). Como consequência, bancos têm um problema fundamental: eles são “insolventes” no curto prazo. Isto é, se todos os depositantes quiserem dinheiro imediatamente, o banco quebra, pois seus ativos valem menos se são liquidados antes da hora certa. Por exemplo, se o banco precisar transformar imediatamente o empréstimo que ele fez para a petshop do seu amigo em dinheiro, ele pode tentar transformar esse contrato de dívida em uma espécie de “título” e tentar vendê-lo a alguém. O problema é que dificilmente o valor que ele receberá será igual ao valor de face do ativo. (se o leitor quiser saber mais sobre o assunto, sinta-se a vontade para ler a nota de rodapé mais longa do mundo3).
Por causa desse problema fundamental, só existem dois cenários possíveis: (1) ou todas as pessoas sacam apenas o dinheiro necessário para cumprir as obrigações do dia a dia e o banco continua solvente, administrando as entradas e saídas recorrentes de recursos; ou (2) todos sacam ao mesmo tempo a grana, o que muito provavelmente levará o banco a falência e, nesse caso, é melhor você correr para chegar ao banco primeiro antes que o dinheiro dele acabe4. Esses dois cenários são os equilíbrios possíveis e o que determina em qual deles o banco se encontra é o nível de confiança dos clientes.
E foi exatamente com o nível de confiança que George Bailey se preocupou ao perceber que de fato se tratava de uma corrida bancária. Ele logo imaginou que a sua própria associação, Bailey Brothers Building and Loan, estaria em apuros e foi correndo com Mary até lá. As portas estavam fechadas mesmo não sendo feriado. Na frente, havia uma multidão de clientes ansiosos e com medo de que suas economias estivessem ameaçadas.
Sabendo que o jogo de corrida bancária é um jogo de confiança, Bailey abre as portas com um sorriso confiante, mas ao entrar no local vê seu tio Billy sentado na frente do seu escritório e bebendo (provavelmente algum destilado apropriado para a ocasião). O que aconteceu foi que o banco em apuros pediu que a associação pagasse os empréstimos devidos imediatamente. Billy fez o pagamento e com isso não havia mais nenhum dinheiro na associação naquele momento. No desespero, o tio fechou o estabelecimento — um grave erro para quem quer passar confiança, principalmente quando o banco da cidade está com problemas de liquidez e as pessoas precisam de dinheiro para sobreviver.
“Quero meu dinheiro agora”, disse um dos membros da associação. Assim como ele, a multidão queria resgatar seus recursos imediatamente, mas como bem explicou Bailey, não é assim que uma instituição financeira funciona:
George Bailey: “Não, mas você... você... você está pensando tudo errado sobre este lugar. Como se eu tivesse o dinheiro lá atrás em um cofre. O dinheiro não está aqui. Seu dinheiro está na casa do Joe... (dirigindo-se para um dos homens) ...ao lado da sua casa. E na casa dos Kennedy, e na casa da Sra. Macklin. Porque, você está emprestando-lhes o dinheiro para construir, e então, eles vão pagar de volta para você da melhor maneira possível. O que você faria agora? Executaria a hipoteca deles?”
O problema do pânico bancário é que a decisão individual de exigir o resgate do dinheiro desconsidera o efeito global que ele gera. Como ilustra a fala de um dos associados:
Tom: “Eu tenho duzentos e quarenta e dois dólares aqui, e duzentos e quarenta e dois dólares não vão quebrar ninguém.”
Sim, mas o Tom esqueceu de combinar isso com os demais que estavam na fila. É justamente esse problema de coordenação que geram os dois equilíbrios possíveis (o bom e o ruim) para uma instituição financeira. Se apenas Tom fosse sacar o dinheiro dele, não haveria motivo para ninguém mais sacar e a associação estaria solvente. Mas esse não era o caso. Não era apenas o Tom e sim boa parte dos membros da associação. Bailey Brothers Building and Loan estava no equilíbrio da corrida bancária.
A associação estava prestes a falir ou pior: ser adquirida pelo Mr. Potter, que estava oferecendo comprar as participações dos associados por metade do valor. No entanto, Mary, a esposa de George, pensa rápido e decide utilizar o dinheiro reservado para a lua de mel para honrar as obrigações. Os dois mil dólares poupados para a viagem foram exatamente o necessário para atender todos os saques dos associados e, embora a associação estivesse salva, George mais uma vez não conseguiria sair de Bedford Falls.
Pulando da panela para o fogo
Finalmente, somos levados ao tempo presente no filme, quando as atribulações de George Bailey parecem atingir o ápice. Na véspera de Natal, seu tio Billy perde oito mil dólares (122 mil dólares a preços de hoje) da associação que precisavam ser depositados no banco. Sem esse dinheiro, a associação seria arruinada e com isso também o legado de Peter Bailey, seu pai. Além disso, George, agora também pai de quatro filhos, iria para cadeia, junto com seu tio Billy.
Desesperado, Bailey recorre ao sr. Potter e tenta pedir um empréstimo. O magnata apenas ri e exige garantias, mas Bailey não tem nada a não ser uma apólice de seguro de vida que pagaria quinze mil dólares em caso de morte, mas cujo valor de venda era de apenas quinhentos dólares.
Sr. Potter: “… sem ações, sem títulos, nada além de miseráveis quinhentos dólares em uma apólice de seguro de vida. Você vale mais morto do que vivo. Por que você não vai até essa gentalha que você ama tanto e peça para eles te darem oito mil dólares? Você sabe por quê? Porque eles te expulsariam da cidade correndo… Sabe o que eu vou fazer por você? (…) na condição de acionista do Building and Loan, eu vou emitir um mandado de prisão contra você.”
A resposta cruel do senhor Potter deu uma ideia ao nosso protagonista. Naquele momento, George Bailey concordaria com o velho magnata: Sua miserável vida valia menos do que vinte mil dólares e, assim, concluiu que pular da ponte de Bedford Falls era a decisão economicamente mais racional.
***
O que torna o filme uma história natalina para toda família e não um drama depressivo, é que Clarence (o anjo da guarda de George) aparece bem na hora e salva nosso herói de morrer afogado. Apesar disso, mesmo após ser resgatado, George não fica feliz, pois o problema original permanecia e a matemática macabra que o fez pular ainda estava correta.
GEORGE: “Só há uma maneira de você me ajudar. Você por acaso não tem oito mil em dinheiro com você?”
CLARENCE: “Oh, não, não. Não usamos dinheiro no Céu.”
(…)
CLARENCE: (para si mesmo) “Hmmmm, isso não será fácil.” (para o George) “Então, você ainda acha que se matar faria com que todos se sentissem mais felizes, eh?”
GEORGE: “Oh, eu não sei. Talvez você tenha razão. Eu suponho que seria melhor se eu não tivesse sequer nascido.”
CLARENCE: “O que você disse?”
GEORGE: “Eu disse que eu desejo nunca ter nascido.”
George havia se convencido que pular da ponte não deixaria todos mais felizes, afinal, ele tinha uma família. Contudo, parecia-lhe claro que seria melhor que se ele nunca tivesse existido, pois, assim, o problema seria resolvido e, como bônus, não haveriam traumas a serem superados pelos familiares.
Percebendo uma oportunidade, Clarence decide agir concedendo a George Bailey um dos maiores privilégios que se pode agraciar um ser humano. Clarence mostra a George um autêntico e verdadeiro mundo contrafactual. Uma realidade idêntica ao mundo real exceto por uma única diferença: nosso protagonista nunca existiu nela.
Ao perambular pela cidade contrafactual, George começa a estranhar as ruas e quadras que conhecia tão bem. Para a surpresa de Bailey, a realidade alternativa é muito pior. Nesse mundo, seu irmão nunca foi um herói de guerra, pois George não estava lá para salvá-lo do afogamento. Ele também nunca esteve presente para salvar a empresa de seu pai. Como resultado, Bedford Falls é uma cidade triste e, na verdade, nem se chama mais Bedford Falls. Ela foi inteiramente dominada pelo Sr. Potter, o qual não está preocupado com nada além de seu próprio bem-estar. Pottersville, como foi rebatizada, é uma cidade fria como seu dono e sem espírito comunitário. George também nunca casou com Mary e nunca teve filhos. Sua esposa é uma mulher solitária e infeliz.
Em uma das cenas mais belas do cinema, George, desesperado, retorna até a ponte na qual renunciou à vida, só que dessa vez para pedi-la de volta. Ele clama aos céus e ao seu anjo da guarda:
[MUSIC CUE: "THE PRAYER” by Dimitri Tiomkin & His Orchestra]5
George Bailey: “Clarence! Clarence! Ajude-me, Clarence. Traga-me de volta. Traga-me de volta. Eu não me importo com o que acontece comigo. Apenas me leve de volta para minha esposa e filhos. Ajude-me, Clarence, por favor! Por favor! Eu quero viver de novo!”
Bem, você não é o rei da Pérsia e tão pouco conhece leis causais
A lição principal do filme é clara assim como o nome Clarence. O modo como você e eu existimos no mundo não nos permite fazer julgamentos de causa e efeito definitivos a respeito de vidas inteiras, seja da nossa ou da vida de outras pessoas. Nós não conhecemos contrafactuais de verdade por maior que seja nosso esforço de tentar reproduzi-los ou estimá-los cientificamente6. Ignorar essa limitação a respeito do conhecimento humano é o que o economista F. A. Hayek chamou de "Pretensão de Conhecimento" (Pretense of Knolwedge). Em sua palestra, quando recebeu o Nobel de economia, ele diz o seguinte:
“Se o homem não deve fazer mais mal do que bem em seus esforços para melhorar a ordem social, ele terá que aprender que neste, como em todos os outros campos onde a complexidade de um tipo organizado prevalece, ele não pode adquirir o conhecimento completo que tornaria possível o domínio dos eventos. Ele terá, portanto, que usar o conhecimento que puder adquirir, não para moldar os resultados como o artesão molda sua obra, mas sim para cultivar um crescimento, fornecendo o ambiente apropriado, da maneira como o jardineiro faz isso com suas plantas.”
Só é possível julgar definitivamente os acontecimentos se conseguíssemos nos colocar inteiramente “fora do mundo” ou “da história”. No entanto, esse é um privilégio que não temos, exceto na ficção ou na pseudociência. A “história” ainda não terminou e você não sabe quando ela terminará. Esse fato tem repercussões que não apenas frustram aspirações totalitárias de controle social — com as quais Hayek estava preocupado —, mas que também são decisivas no modo como interpretamos nossa própria vida.
Diante dessas limitações e apesar das dificuldades da vida, a obra de Frank Capra nos convida a agir sempre com bondade e amor ao próximo, assim como o protagonista do filme. Isso fica claro quando, no final, George Bailey testemunha um milagre de Natal. Contrariando a profecia do Sr. Potter, a cidade inteira, ao saber do dinheiro perdido, se une para restituir a quantia. O total arrecadado supera em muito os oito mil dólares extraviados. Bailey não era um fracasso, afinal. Não porque tinha acumulado títulos ou ações, mas sim porque, mesmo sem perceber, ele havia dedicado sua vida a preservar uma comunidade.
O milagre de Bedford Falls foi possível, pois os membros da comunidade confiavam em George e também uns nos outros. Essa é mais uma lição do filme: comunidades podem ser o meio mais adequado para resolver o velho dilema “Mercado versus Estado”.
Sabemos que a economia de mercado, em geral, é bastante eficiente na alocação de recursos, é compatível com a liberdade e também oferece as condições para inovação e dinamismo econômico. No entanto, sabemos também que existem questões que não são tão facilmente resolvidas apenas com preços. Problemas de ação coletiva como, por exemplo, evitar o equilíbrio ruim de uma corrida bancária, exigem uma coordenação entre os indivíduos e não são facilmente resolvidos pelo sistema de preço. Uma apólice de seguro contra uma maré de azar na vida (que, em tese, poderia incluir até as condições do seu nascimento ou a presença de um tio atrapalhado que perde seu dinheiro), por exemplo, também é difícil de contratar no mercado, pois esse contrato de seguro seria muito difícil de escrever e adimplir.
Uma sugestão óbvia para tentar complementar o mercado é o Estado. Com ele, é até possível criar alguma rede de proteção social que funcionaria como um seguro. Também é possível resolver problemas de ação coletiva. O problema é que isso, em geral, é feito às custas de eficiência e liberdade. Afinal, governos são feitos dando poderes para pessoas, e pessoas têm suas próprias agendas. As experiências não são boas.
O que Frank Capra mostra em Bedford Falls é uma terceira forma — complementar — de cuidar dos recursos da sociedade. No filme, a confiança interpessoal entre os membros de uma comunidade civil resolveu os problemas sem mercados ou governos. Bailey conseguiu mitigar parte dos efeitos da corrida bancária apenas conversando com as pessoas. Além disso, no final do filme, a comunidade se reuniu para ajudar alguém em apuros. Ações coletivas e divisão de riscos em uma sociedade são mais fáceis de serem realizadas na presença de confiança mútua e de espírito comunitário.
Uma Mensagem Final
Se você sobreviveu até aqui, caro leitor, entenda: A vida de George Bailey é a sua também. Esse ano pode não ter sido tão bom quanto você imaginava e, talvez algum de vocês, assim como George, pense que sua vida até aqui não passou de uma sucessão de frustrações. No entanto, lembre-se de Bedford Falls. Implícito no filme, está a tese de que cada um de nós não é apenas parte de um drama individual, mas sim de uma história maior, da qual o Autor, embora nos convide a colaborar, é o único que leu todo roteiro. Por isso, é possível que você esteja apenas no meio da história cujo um dos papéis lhe cabe; e esse papel pode ser mais importante do que você imagina.
[MUSIC CUE: "AULD LANG SYNE" by Glenn Miller and His Orchestra]
Click, Um Homem de Família, De Volta para o Futuro, o episódio “The One That Could Have Been” de Friends… O leitor certamente se lembrará de outros.
Tente usar um elevador sem compreender a relação causal entre “apertar o botão com um desenho de uma seta para cima que está no painel da sua frente” e o “elevador aparecer”. Implícito nessa sua compreensão estão os cenários contrafactuais: no mundo em que você não aperta o botão, o elevador não aparece para você, a não ser acidentalmente.
Uma Digressão sobre Bancos e Corridas Bancárias
Imagine que você quer construir uma petshop numa esquina movimentada do seu bairro. Você sabe que esse empreendimento é lucrativo, mas não tem recursos necessários para fazer os investimentos iniciais. Em um mundo onde não existem bancos, você poderia pedir grana emprestada para seus vizinhos. Você explica a eles a sua ideia milionária, advertindo-os de que, assim como quase todo grande negócio, ele só vai dar lucro mesmo em dois ou três anos. Além disso, você também os lembra de que se eles quiserem o dinheiro antes do projeto terminar (no primeiro ano, por exemplo), eles receberão apenas o que investiram e nada mais, afinal, liquidar parte do projeto, vendendo parte dos materiais, por exemplo, é algo custoso.
Após ouvirem as explicações, os investidores fazem o seu planejamento financeiro e decidem fazer o investimento. No ano seguinte, no entanto, parte deles descobre que vão precisar gastar mais do que esperavam com consumo, seja porque a geladeira ou o carro estragaram ou porque descobriram que vão ser pais. Por esse motivo, eles precisam liquidar seus investimentos antes da maturidade. Ou seja, eles tiveram um problema de liquidez. Infelizmente, por mais que você se programe pelos próximos dois ou três anos sobre quanto dinheiro vai precisar utilizar, imprevistos acontecem. Os felizardos que viveram sem imprevistos, no entanto, podem desfrutar integralmente os dividendos das petshops.
Mas espera aí… Esse problema é facilmente contornável, não? Tudo bem que é impossível prever o futuro e, na hora em que fazemos o investimento, não sabemos em que grupo iremos estar no futuro. No entanto, estamos numa economia de mercado, ora bolas! Você e os investidores poderiam realizar contratos entre si para eliminar esse risco de liquidez. Ele funcionaria como uma espécie de seguro: o investidor abre mão de um pouco dos ganhos (e do consumo) futuros que ele teria no mundo em que ele não precisou de liquidez — e portanto conseguiu esperar até o final do projeto —, por um pouco mais renda e consumo presente no mundo em que ele se deu mal e precisou de liquidez para arrumar o carro. Assim como todo seguro, o investidor estaria tirando um pouco de consumo do mundo em que se deu bem e transferindo para o mundo em que ele se deu mal.
O problema desse contrato é que a “necessidade de liquidez” não é algo que pode ser observada facilmente. Em outras palavras, a informação sobre as suas necessidades de gastos extraordinários é privada e dificilmente verificável. Essa assimetria de informação entre os investidores, impede que eles realizem esse tipo de contrato uns com os outros. Ou seja, nessa economia não é possível transformar ativos ilíquidos (participações na petshop) em liquidez imediata. Para resolver esse problema é que existem bancos. Eles têm o papel de fornecer liquidez ao mesmo tempo em que fazem investimentos ilíquidos.
A ferramenta que viabiliza isso é o contrato de “depósito à vista”. Um depósito à vista nada mais é do que os depósitos que você faz na sua conta corrente, os quais você pode sacar imediatamente. Eles podem render juro ou não. Evidentemente, o dinheiro que você depositou não fica parado. Boa parte dos recursos depositados são emprestados para outras instituições financeiras (como a empresa do pai de George Bailey) ou empresas como a sua petshop. O que permite o banco fazer isso é o fato de que, como vimos anteriormente, nem todas as pessoas precisam sacar os recursos ao mesmo tempo. Algumas sacam mais tarde, outras mais cedo. Nesse sentido, é como se todos os investidores e o banco fizessem um grande contrato de seguro. O banco é capaz de adiantar para alguns uma parcela maior do que eles investiram, pois ele sabe que outros sacam apenas mais tarde.
Note, os ativos do banco são ilíquidos. Eles valem menos do que o valor de face se forem liquidados antes. Ou seja, todo mundo sabe que se todos fossem ao banco ao mesmo tempo para sacar todo dinheiro de suas contas, o banco não teria como honrar todos os compromissos assumidos. Isso significa que o mecanismo bancário funciona somente se os indivíduos forem ao banco conforme a necessidade de cada um — alguns mais cedo e outros mais tarde (em outras palavras, aleatoriamente). Isso significa que, mesmo sabendo que o banco é “insolvente” no curto prazo, pode ser perfeitamente racional não se desesperar e correr para sua agência sacar todo seu dinheiro. Dado que os outros investidores só saquem o dinheiro que irão utilizar no momento, é racional que você faça o mesmo. O problema é que existe uma outra possibilidade racional aqui: se todos forem sacar imediatamente o dinheiro do banco, é racional que você também o faça. Os dois cenários (dois equilíbrios) são plausíveis. Para o azar de George e sua esposa, eles estavam vivenciando o segundo cenário.
Fim da digressão.
A expressão “corrida bancária” não é uma metáfora.
“The Prayer” é diretamente inspirada no canto gregoriano Dies irae (Dia de Ira), composto pelo Papa São Gregório, o Grande. A letra descreve o Último Julgamento, onde as ações de todos os homens serão julgadas em definitivo, e os justos serão salvos e os injustos não. Naquele momento do filme, George Bailey contemplava sua ausência (morte) e, por contraste, as ações da sua vida… e suplicou aos céus por misericórdia. Aliás, Dies irae é uma canção que, apesar de antiga, está presente na nossa cultura, como mostra esse vídeo que você precisa obrigatoriamente assistir.
Parabéns, Guilherme! Excelente texto! Feliz Natal!