Dinheiro é Memória
Uma parábola sobre padeiros, cervejeiros e açougueiros benevolentes, Bitcoins, Real digital e o fim da moeda.
Eu preciso acreditar em um mundo fora da minha mente.
Eu preciso acreditar que minhas ações ainda têm sentido.
Mesmo que eu não consiga me lembrar delas.
Eu preciso acreditar que quando meus olhos estão fechados, o mundo continua aqui.
Eu acredito que o mundo ainda está aqui? Ele ainda está aqui?
— Leonard Shelby, Memento (transcrição)
Polaroides legendadas e tatuagens eram os meios através dos quais Leonard Shelby tentava reconstruir sua história. O personagem principal do filme noir “Memento” tinha amnésia de memórias de curto prazo. Embora ele se recordasse do seu passado anterior ao início do problema, ele era incapaz de formar novas memórias. Tudo que ocorria há quinze minutos era esquecido.
Se a simples vida cotidiana já seria desafiadora a uma pessoa com esse problema, a situação do protagonista era ainda pior, pois ele estava tentando resolver o assassinato da sua esposa. No filme, as fotos de lugares e pessoas, as tatuagens contendo pistas e informações vitais precisavam ser desvendadas de novo e de novo pelo protagonista, como um quebra-cabeça que cresce em complexidade e se desmancha de tempos e em tempos.
Dinheiro, para que serve?
Dinheiro é meio de troca. Ele é um meio para atingir um fim. Você precisa de Reais, pois eles servem para conseguir o que você realmente precisa: Pães, cerveja e carne, por exemplo. Uma forma natural de explicar o que é o dinheiro é meditar sobre o que aconteceria na sua ausência. Carl Menger, um dos economistas mais importantes do século XIX, argumenta que, sem o dinheiro, trocas só seriam possíveis na presença de uma dupla coincidência de desejos. A dupla coincidência é um conceito simples de entender. Se você é um padeiro e quer cerveja, você só vai conseguir essa bebida se encontrar um cervejeiro que estiver procurando pão. A coincidência é dupla pois quem oferece a cerveja precisa querer o pão e vice-versa. Embora esse exercício imaginativo seja útil para entender o papel da moeda, as economias pré-monetárias muito provavelmente não dependiam de duplas coincidências para funcionar ou mesmo para que existissem trocas ali. As trocas aconteciam, mas eram na forma de “presentes”.
Uma Parábola de Presentes1
Antes do dinheiro existir, as organizações humanas se restringiam a pequenas comunidades, muitas vezes isoladas umas das outras. Considere uma sociedade muito pequena com apenas três habitantes. No espírito smithiano, imagine que cada um dos membros dessa comunidade se especializou em apenas um de três produtos: pão, cerveja e carne. Trata-se, portanto, de uma economia com um padeiro, um cervejeiro e um açougueiro.
Certo dia, o padeiro decide que quer uma cerveja e, portanto, vai até a casa do cervejeiro atrás da bebida. Ao chegar lá, o cervejeiro se dispõe a vender sua cerveja, mas há um problema: o cervejeiro não quer pães, mas, sim, alguns pedaços de carne. Como não há dupla coincidência nos desejos, poderíamos imaginar que o padeiro deixaria a casa do cervejeiro sem nenhum barril da bebida. No entanto, não é isso que acontece. O cervejeiro entrega de bom grado a cerveja para o padeiro, sem que este precise lhe entregar nada. Para um observador de fora da comunidade, esse gesto poderia ser interpretado como um “presente”.
A explicação para a aparente benevolência do cervejeiro está na confiança da memória comunitária. Ele sabe que todos os membros da sociedade sabem que ele é cervejeiro e que ele presenteia cervejas. Assim sendo, o cervejeiro também sabe que ele pode ir até o açougue pedir alguns pedaços de carne. O açougueiro lhe dará de bom grado, afinal ele se lembra que o cervejeiro produz cervejas e que ele presenteia cervejas para o padeiro. Da mesma foram, essa memória comunitária permite ao açougueiro pedir alguns pães ao padeiro, o qual também lhe presenteará, pois sabe que ele satisfez a demanda do cervejeiro.
Note que essa economia simples sobrevive satisfatoriamente sem a necessidade de dinheiro, porque é muito fácil manter o registro das transações passadas. Há um registro tácito, uma memória comum do que foi dado e recebido por cada um dos membros. Essa memória pode ser pensada como um grande livro razão público, o qual é mantido de forma suficientemente atualizada e fidedigna. As demandas do cervejeiro são atendidas, porque ele tem créditos com o padeiro, os quais, nesse exemplo, serão redimidos em última instância pelo sujeito que quer pães, no caso, o açougueiro.
Se fosse possível observar essa memória comunitária em um determinado ponto do tempo, seria possível identificar o saldo de cada um dos habitantes daquela comunidade possui em termos de serviços prestados ou, melhor dizendo, de presentes entregues aos outros membros. Colocando esse saldo em uma mesma unidade de medida, ele poderia ser interpretado como dinheiro que cada um tem na quele momento.
Um ladrão na noite
Eu não tenho memória de curto prazo. Eu sei tudo sobre mim mesmo, eu apenas…
Desde meu ferimento, eu não consigo formar novas memórias. Tudo desaparece.
Se nós conversarmos por muito tempo, eu esquecerei como nós começamos…
… e, na próxima vez em nos vermos, eu não lembrarei dessa conversa.
Eu nem sei se nós já nos conhecemos antes.
Então, se eu parecer um pouco estranho ou rude, ou algo assim, uh…
Eu já havia contado isso a você antes, não?
— Leonard Shelby, Memento (transcrição)
Agora, imagine que um ladrão vem até ao micro vilarejo do açougueiro, cervejeiro e padeiro. Ele vai sorrateiramente até a casa de cada um deles e golpeia as cabeças de cada um para deixá-los inconscientes enquanto ele rouba os estoques. No dia seguinte, os três artesões acordam com dor de cabeça e sem memória do ocorrido. Além disso, eles notam uma sequela terrível. Assim como o protagonista de “Memento”, nenhum deles não têm mais memória de acontecimentos imediatamente recente. Todos são incapazes de lembrar do que fizeram, nem do que aconteceu depois alguns minutos. A partir desse momento, a economia de presentes acaba.
Sem a memória perfeita, os três são incapazes de acompanhar o fluxo de presentes da economia. Quando o cervejeiro vai até ao açougueiro atrás de alguns pedaços de carne, ele não vai saber se o cervejeiro produziu cerveja suficiente para que ele tenha direito a carne. Antecipando essa possibilidade, o cervejeiro, por sua vez, não vai querer presentear o padeiro com suas cervejas. Não há mais presentes nessa economia e as únicas trocas possíveis são aquelas em que existe uma dupla coincidência de desejos.
Para resolver esse problema, o padeiro, açougueiro e cervejeiro tentam algumas soluções. Uma delas é escrever em uma planilha pública todas as trocas que aconteceram. Dessa forma, os três teriam um registro físico do que aconteceu e poderiam consultá-lo sempre que necessário. O problema dessa solução é que a planilha poderia ser adulterada e, desde o incidente, ninguém confia suficientemente uns nos outros.
Outra solução é anotar em um papel sempre que algum produto for presenteado por algum dos três. Por exemplo, o padeiro poderia receber a cerveja e entregar ao cervejeiro um papel dizendo que o cervejeiro lhe presenteou com um barril da bebida. Esse papel poderia ser usado pelo cervejeiro para conseguir carne com açougueiro, o qual usaria o papel para resgatar pães do padeiro. O problema dessa última solução é que, assim como a planilha pública, existe uma grande possibilidade de adulteração. O cervejeiro poderia falsificar bilhetes do padeiro e conseguir carne do açougue sem ter produzido cerveja.
A Moeda é um signo para serviços prestados
Embora o comprovante não seja a solução ideal, a ideia de algo que comprove a entrega de presentes não é ruim em si. Uma forma de resolver o problema dos três artesões é tornar o comprovante difícil de falsificar ou reproduzir. Um metal precioso como o ouro, por exemplo, pode funcionar. Se o padeiro, cervejeiro e açougueiro souberem mais ou menos qual é a quantidade desse metal naquela economia, ele pode funcionar como registro de entrega de presentes. O padeiro pede cerveja ao cervejeiro e entrega a ele uma quantidade de ouro. Essa troca é possível, pois o cervejeiro sabe que o açougueiro aceitará o ouro em troca dar carne. Ele sabe isso, porque entende que o açougueiro reconhece na posse do ouro um comprovante de serviços prestados. Isso é dinheiro: um signo de serviços prestados naquela economia.
Saindo do mundo artificial da parábola, não é necessário que exista uma memória deficiente para que mais cedo ou mais tarde economia de presentes se torne inviável. Mesmo que o padeiro, o cervejeiro e o açougueiro tivessem uma boa memória, a medida que a economia ganhasse complexidade e maior divisão do trabalho — adicionando mais membros ao vilarejo ou trocando com outras comunidades, por exemplo — seria impossível manter um registro confiável de todas as transações. Seria impossível afirmar com elevado grau de confiança quem deve o quê para quem. O dinheiro surge como um substituto para a memória comunitária. Se você tem 100 Reais no bolso, é porque você provavelmente fez algum serviço ou produto para alguém e isso é suficiente para que outras pessoas aceitem dar mercadorias e serviço em troca dessa nota2. O histórico das transações da economia brasileira inteira pode ser resumido ao saldo de dinheiro na carteira de cada brasileiro, não há necessidade de memória.
Novas tecnologias, o fim do dinheiro e o retorno da memória
O dinheiro é uma boa solução para o problema da memória imperfeita. No entanto, ele tem alguns inconvenientes. O principal deles é que eu preciso encontrar fisicamente o cervejeiro para entregar dinheiro a ele. Se eu quiser comprar cerveja por um aplicativo de entrega no meu celular, por exemplo, eu preciso usar um banco ou uma empresa de cartão de crédito para efetuar a transação. Seria muito conveniente, no entanto, se eu pudesse enviar dinheiro para o cervejeiro diretamente, como eu faria se fosse pessoalmente até lá. A moeda digital é uma forma de fazer isso.
O Bitcoin é o exemplo mais famoso de uma moeda digital que dispensa a necessidade de intermediários para enviar dinheiro de um lugar ao outro do mundo. O princípio por trás dessa moeda é o mesmo da memória na pequena comunidade da parábola anterior. Existe um grande livro razão, um registro público que pode ser auditado, que documenta as transações realizadas entre dois indivíduos quaisquer e que, portanto, consegue autenticar o saldo de “moeda” de cada pessoa. A validação das transações é remunerada com Bitcoins, gerando incentivos para que pessoas disponibilizem seus computadores para esse serviço. Há também uma previsibilidade sobre como o estoque de moeda evoluirá ao longo do tempo.
Uma outra forma de criar uma moeda digital é através do Estado. Ela seria muito parecida com um o Pix, mas a diferença é que você não precisaria ter conta em banco. Imagine se todos os brasileiros com CPF estivessem registrados no Banco do Brasil e, a partir desse registro, eles pudessem realizar pagamentos com um Real digital de um CPF para outro utilizando carteiras virtuais. Nesse contexto, a “moeda” não seria nada mais do que uma unidade de conta que seria movida de um lado para o outro em uma grande planilha administrada pela autoridade monetária. Seria mais ou menos como um livro razão que o padeiro, o açougueiro e o cervejeiro pensaram em criar quando eles perderam a memória. A diferença entre ela e algo como o Bitcoin é que o livro razão seria administrado pelo Banco Central.
Seja Bitcoin ou Real digital, o fato é que essas novas tecnologias tornam muito clara a relação entre dinheiro e memória. Enquanto o dinheiro na sua carteira é um signo físico de uma memória comunitária abstrata, o saldo de Bitcoin e do Real digital na sua carteira virtual são o contrário. O elemento mais concreto desses meios digitais é justamente a planilha de transações ou, em outras palavras, o tal livro razão. O livro razão é o que importa, o “dinheiro” é apenas uma unidade de conta. A memória comunitária de todas as transações que foram realizadas informa por meio dos saldos de cada indivíduo quantos créditos cada um deles têm. Esses créditos dão acesso aos bens e serviços.
A conveniência em realizar trocas remotas, combinada com as tecnologias digitais fez com que os indivíduos optassem cada vez mais pela memória no lugar do dinheiro. Ninguém mais usa dinheiro para pagar suas compras e cada vez mais usamos Pix ao invés de usar serviços bancários tradicionais. O efeito colateral é tornar a memória comunitária que estava dispersa entre milhões de indivíduos em uma memória concentrada, seja na planilha pública e anônima do Bitcoin ou na planilha dos Banco Centrais.
Resolvendo para o equilíbrio
Governos existem e sempre vão existir. Eles têm o monopólio da violência, cobram impostos em moeda que eles mesmos emitem e têm grande influência sobre a infraestrutura de seus países (energia, internet etc.). Por isso, eu não acredito que o moedas do tipo Bitcoin tem alguma chance contra moedas digitais estatais. A conveniência da moeda digital estatal é a mesma, se não maior, do que a do Bitcoin. O futuro, portanto, me parece estar no Real (Dólar, Libra etc.) digital.
Nesse contexto, é importante meditar sobre o poder que o Estado recebe em troca da conveniência de realizar transações remotas. Você pode comprar pão à distância e, em troca, o Estado ganha acesso a memória comunitária das transações. Isso tem o efeito de aumentar enormemente os meios de ação dos governos. Talvez não seja preocupante que o Banco Central se lembre — literalmente se lembre — de tudo que foi trocado na economia. No entanto, o que acontece se outras partes do governo conseguirem acesso a essa memória?
(Em algum lugar de um livro sobre um ano específico há uma discussão sobre se o passado é real, e sobre se este fica nos registros ou não, e sobre como quem controla o presente (e, portanto, os registros) pode controlar o passado e, com ele, controlar futuro… Qual o livro mesmo? Não consigo me lembrar do nome…)
[MUSIC CUE: “Something in the air” by David Bowie]
A parábola nada mais é do que uma versão mais detalhada daquela que existente no artigo de Narayana R. Kocherlakota, "Money is memory." publicado em 1998 no Journal of Economic Theory. Essa também é uma boa hora para confessar que eu roubei o título do artigo dele.
Moedas fiduciárias como o Real servem para trocas assim como o ouro. É razoavelmente difícil falsificar Reais e o sistema de metas de inflação combinado com uma política fiscal coerente podem ancorar a expectativa sobre o valor da moeda.