NEO: A Matrix?
MORPHEUS: Você quer saber o que é?
[Neo engole em seco e assente com a cabeça]
MORPHEUS: A Matrix está em todo lugar, está ao nosso redor, até aqui nessa sala. [...] Ela é o mundo que foi colocado sobre seus olhos para cegá-lo da verdade.
NEO: Qual verdade?
Esse é um diálogo central de uma das cenas mais importantes de um dos filmes mais icônicos dos anos 90. Matrix retrata uma distopia futurista onde os humanos estão sob controle de uma inteligência artificial. Existem vários motivos que tornaram esse filme um fenômeno cultural e um deles é o nosso fascínio pelas distopias.
Buscando no nosso imaginário cenas de um futuro distópico, talvez a imagem mais comum que surge em nossa mente é uma realidade em tons de cinza, cidades em ruínas com soldados pisando em alguém. São burocratas sisudos fazendo discursos sobre ordem e disciplina como no comercial da Apple de 1984, ou em um clipe da banda Pink Floyd. É o Estado com “onipresença de um imperativo categórico” retratada no clássico de George Orwell, 1984.
Embora essas sejam a cenas que imaginamos, a verdade é que dificilmente o binômio “caserna e coturno” conseguiriam manter uma sociedade sob controle o tempo todo, principalmente em um ambiente de miséria e estagnação econômica. Medo é um motivador poderoso, mas pessoas amedrontadas não conseguem produzir o suficiente e crises constantes geram descontentamentos que, eventualmente, geram revoltas, as quais precisam ser reprimidas com violência crescente. Tudo isso é muito difícil de fazer funcionar por muito tempo. Por isso, para que uma sociedade controlada e administrada se perpetue, é necessário que as pessoas se sintam confortáveis nos lugares designados pelo “Controlador”. E como fazer isso?
Distopias 101: O que você precisa saber
O planejador da sociedade tem muitos problemas para resolver. Para que sua distopia prospere, ele precisa organizar eficientemente a economia. E isso envolve saber as respostas de muitas perguntas. As estradas serão de asfalto ou concreto? O gás natural vai ser usado para produção de fertilizantes para agricultura ou para aquecer a água da torneira da sua casa?
Organizar significa fazer escolhas e cada escolha envolve abrir mão de uma das opções. Mais alumínio para produzir latinhas de Itaipava significa ter menos desse metal para fuselagem de aviões. Mais elusiva ainda é saber como utilizar as pessoas nessa economia e do que elas precisam. Qual é a habilidade de cada um, quanto cada pessoa consegue trabalhar e quantos litros de sorvete essa pessoa deve receber? E ainda — Céus! — “de quantos blogs essa sociedade precisa?!”
O leitor atento perceberá que natureza do problema enfrentado pelo controlador é informacional. A produtividade de uma pessoa trabalhando como contador, suas preferências sobre qual serviço de streaming ela prefere e a forma mais barata de produzir bolinhas de gude são informações que estão dispersas na sociedade. Um arquiteto de uma distopia, precisa coletar esse conhecimento e sistematizá-lo para que suas escolhas tenham racionalidade. Essa tarefa tem pelo menos duas grandes dificuldades, uma de ordem prática e outra conceitual. A primeira dificuldade é que essas informações devem ser coletadas frequentemente e de forma ampla. Ou seja, é um desafio logístico1.
A dificuldade maior, no entanto, é a conceitual. Suponha que o controlador tenha um IBGE hipertrofiado, capaz de resolver a primeira dificuldade. O entrevistador do Censo Totalitário vai até a sua casa e faz um milhão de perguntas como, por exemplo: O quanto você valoriza ter acesso ao ar-condicionado? Quantas horas por dia você consegue trabalhar e qual é o menor salário que você aceitaria receber? Novamente, o leitor atento perceberá os problemas com esses tipos de perguntas. Se não ficou claro, uma citação do gerente regional da Dunder Mifflin ajudará a ilustrar a questão:
Eu prefiro alguém que seja honesto comigo do que um bom trabalhador. Porque, se ele fosse honesto, eu diria "Ei, você consegue dar conta desse trabalho?" e ele diria "Eu não... não, eu não consigo.". E então eu diria, "Bem, então não vou contratá-lo. Sem querer ofender. Você parece ser um cara muito legal, mas você não é qualificado. Você mesmo admitiu."
~ Michael Scott. Temporada 5, episódios 14/15
Perceberam? O candidato honesto revelou algo sobre ele. Revelou sua produtividade para uma determinada tarefa — algo que ele tinha incentivo para esconder. O mesmo raciocínio se aplica a praticamente todas as perguntas do entrevistador do censo da distopia. Ninguém vai dizer qual é o menor salário que ela precisa receber para trabalhar em cada tipo de ocupação. Os encarregados de produzir aeronaves, por exemplo, têm incentivo a exagerar na quantidade de alumínio que eles necessitam e, convenhamos, ninguém vai confessar que consegue viver com apenas duas horas de ar-condicionado no ano.
Por esse motivo, não basta um censo onipresente, o Controlador também vai precisar inventar um jeito… pensar em um sistema… desenhar um mecanismo para que as pessoas digam voluntariamente a verdade sobre todas essas coisas que, em princípio, elas gostariam de esconder e omitir. O mecanismo deve incentivá-las a serem honestas, a falarem a verdade. Um exemplo de mecanismo é um leilão, onde os participantes acabam sendo incentivados a falar a verdade sobre o quanto eles valorizam um determinado bem. Outro exemplo é o uso de incentivo de remuneração por desempenho como é feito em algumas empresas. Um último exemplo são os serviços de cashback2. O Controlador, portanto, precisa desenvolver arcabouços institucionais que levem os produtores e consumidores dessa sociedade a revelarem os seus “tipos”3. Isso não é algo trivial e se for feito de forma equivocada pode gerar uma economia muito confusa.
Além do problema de incentivos para falar a verdade, existe uma segunda parte do problema conceitual. Mesmo que exista um mecanismo que façam as pessoas falarem a verdade uma vez dentro da distopia, mesmo assim isso não é garantia de que as pessoas vão escolher participar dela. O Controlador precisa pensar em cenouras atrativas o bastante para que as pessoas queiram entrar no seu grande projeto social.
“Mas porque alguém gostaria de participar de uma distopia?", perguntou alguém antes de se logar no Metaverso para encontrar seus amigos virtuais. Veja, é tudo uma questão de gerar dopamina e serotonina “suficientes” para seja irresistível trocar liberdade por conforto e bem-estar. Como diria Cypher, o traidor no filme Matrix (um exemplo de uma distopia quase perfeita, por sinal):
“Eu sei que esse bife não existe. Eu sei que quando eu o coloco na minha boca, a Matrix está dizendo ao meu cérebro que ele é suculento e delicioso. Depois de nove anos, sabe o que eu me dei conta? Ignorância é uma benção.”
E de maneira mais direita e grosseira:
“Se você [MORPHEUS] tivesse nos dito a verdade, nós teríamos dito para você enfiar aquela pílula vermelha bem no seu [censurado]!”
Ou seja, todo, ou talvez quase todo, ser humano tem um limiar a partir do qual uma vida planejada e administrada pelo Controlador pode se tornar aceitável.
Então, para revisar: uma distopia precisa organizar a sociedade e isso envolve fazer escolhas. Essas escolhas serão racionais apenas se existirem informações suficientes sobre o valor de cada alternativa. Essas informações estão pulverizadas entre os indivíduos na sociedade, e muitas delas não podem ser sistematizadas em uma planilha de Excel. Coletá-las envolve um custo logístico enorme e, para que elas sejam verdadeiras, é preciso desenvolver mecanismos de incentivos para que as pessoas falem a verdade. Por fim, é preciso oferecer prazer e conforto para que as pessoas desejem participar ao invés de aceitar a realidade.
A lista é grande e a tarefa parece ser árdua. Não é à toa que projetos de distopias, em geral, acabam fracassando na vida real. É impossível para um Controlador conseguir riscar todos os itens da lista. Ou será que é?
Hora de colocar o Chapéu de Alumínio
A revolução tecnológica dos últimos 30 anos trouxe muita conveniência e conforto para as pessoas. A internet combinada com smartphones trouxeram a habilidade de interagir com virtualmente qualquer pessoa em qualquer hora e qualquer lugar. Os serviços de e-mails, redes sociais como Instagram e WhatsApp são em gratuitos. Mais revolucionário ainda, os serviços de busca como Google garantem uma espécie de memória quase perfeita e acessível a todos que tenham internet. A Amazon revolucionou a logística de entregas de produtos e também criou algoritmos que sugerem quais produtos são relevantes. Além disso, a própria internet propicia ao indivíduo comum mais entretenimento do que muitos reis possuíam nos séculos anteriores.
O problema é que essas benesses têm um custo. Já é lugar comum dizer isso, mas a “gratuitidade” desses serviços só é possível, pois através dela as empresas obtém informações de milhões de pessoas. A combinação da sua interação nas redes sociais, do seu uso de aplicativos e do seu deslocamento geográfico, por exemplo, cria uma espécie de “sombra” de você. Através dela é possível identificar padrões extremamente relevantes para um aspirante a planejador. A infraestrutura tecnológica para um planejamento melhorou muito desde 1917. Ela combina a coleta e compilação de bilhões de informações4 com desenhos de mecanismos que te fazem contar "micro" pedaços das verdades ao seu respeito. Esses pedaços de verdade podem ser combinados de tal sorte que um planejador poderia, em tese, aprender muito mais a seu respeito do que você julgaria conveniente5.
Com informações sobre os tipos de praticamente cada indivíduo, não há, em princípio, necessidade de violência para garantir o controle. Incentivos e nudges corretos bastam para administrar uma sociedade. Por exemplo, a instituição de uma renda básica universal — onde cada indivíduo da sociedade teria direito a uma renda mínima independentemente da sua renda — é uma forma de estimular a dependência do Estado. Combinada a ela, pode-se instituir um Sistema de Créditos Sociais, o qual remunera indivíduos em uma determinada região por comportamentos “bons” e retira créditos por comportamentos “ruins”. Pense em um sistema que mede o quanto de carbono uma pessoa está usando. Esse aplicativo de mensuração de carbono poderia sugerir que você mude alguns comportamentos (sugerir trocar de cardápio, por exemplo). Como incentivo, ele poderia aumentar ou diminuir os bens e serviços aos quais você tem acesso.
Se o leitor ainda continua o chapéu de alumínio até aqui, espero que já tenha ligado os pontos. As novas tecnologias de informação e comunicação alimentam o planejador sobre o comportamento da população. Os créditos sociais combinados com os nudges e a renda mínima universal são as ferramentas operacionais do controlador. Elas são particularmente eficazes para governar pessoas como nós, que temos grandes dificuldades em cultivar as virtudes da Temperança e Fortitude6. Portanto, além de funcionar com certa eficiência econômica, essa sociedade planejada também seria um projeto que boa parte da população aprovaria anestesiados pelo conforto e prazer.
O que há de errado nisso?
O que há de errado com uma sociedade em que as pessoas optam por abrir mão de liberdade em prol de conforto e bem-estar? Essa é uma das perguntas que torna a obra de Aldous Huxley, “O Admirável Mundo Novo”, tão importante. O autor propõe uma distopia muito diferente daquela de George Orwell e, no meu entendimento, mais plausível. Em princípio, todos “vivem bem” nesse mundo novo, “não há inconveniências”, como diz o Controlador. O romance escrito em 1931 propõe o modelo de sociedade controlada mais perigoso, pois é justamente fundamentado no conforto e bem-estar. É uma distopia onde o planejador fez o dever de casa…
*** Pós-Créditos ***
“… Eu gosto das inconveniências.” [falou o Selvagem]
“Nós não,” disse o Controlador. “Nós preferimos fazer as coisas confortavelmente.”
“Mas eu não quero conforto. Eu quero Deus, eu quero poesia, eu quero perigo real, eu quero liberdade, eu quero bondade. Eu quero pecado.”
“De fato,” disse Mustapha Mond, “você está revindicando o direito de ser infeliz.”
“Tudo bem, então,” disse o Selvagem de forma desafiadora, “Eu estou reivindicando o direito de ser infeliz.”
“Sem mencionar o direito de ficar velho e feio e impotente; o direito de ter sífilis e câncer; o direito de ter muito pouco para comer; o direito de ser sujo; o direito de viver em constante preocupação sobre o que pode acontecer amanhã (…).” Houve um longo silêncio.
“Eu reivindico todos eles”, disse o Selvagem enfim.
Mustapha Mond encolheu os ombros. “Como quiser”, disse ele.
Admirável Mundo Novo, trecho do Capítulo XVII.
[MUSIC CUE: "BRAVE NEW WORLD" by IRON MAIDEN]
Na verdade, não é apenas logístico. Algumas informações não podem ser sistematizadas. Tente transmitir a alguém o conhecimento de “como andar de bicicleta”. Boa parte do conhecimento humano é intuitivo e, em geral, você precisa vivenciá-lo para entendê-lo.
A empresa de cashback remunera você para descobrir o seu padrão de consumo, preços e quantidades.
“Tipo” é um jargão. O tipo de uma pessoa pode se referir a uma lista de características da pessoa como, por exemplo, a produtividade dela ou a disposição a pagar por café.
Tentei evitar a todo custo uma buzzword, mas, ok, podem falar big data.
E, no entanto… Mesmo você lendo esse artigo agora e colocando o chapéu de alumínio junto comigo, muito provavelmente o seu comportamento não mudará. Por quê? Bem, veja, e-mails gratuitos são muito convenientes. Vídeos do Youtube são muito interessantes e aquele aplicativo de envelhece as pessoas em uma foto é muito engraçado. O conforto e o bem-estar nos fazem aceitar essa coleta de informação.
Cabe aqui mencionar uma longa citação de um grande estadista inglês:
“Os homens são qualificados para a liberdade civil na proporção exata de sua disposição a colocar grilhões morais em seus próprios apetites, - na proporção em que seu amor à justiça está acima de sua ganância (...) A sociedade não pode existir, a menos que um poder controlador sobre a vontade e o apetite seja colocado em algum lugar; e quanto menos houver dentro, mais deve haver fora. Está ordenado na constituição eterna das coisas que homens de mentes intemperantes não podem ser livres. Suas paixões forjam seus grilhões.”
“And, indeed, this is the odd thing that is continually happening: there are continually turning up in life moral and rational persons, sages and lovers of humanity who make it their object to live all their lives as morally and rationally as possible, to be, so to speak, a light to their neighbours simply in order to show them that it is possible to live morally and rationally in this world. And yet we all know that those very people sooner or later have been false to themselves, playing some queer trick, often a most unseemly one. Now I ask you: what can be expected of man since he is a being endowed with strange qualities? Shower upon him every earthly blessing, drown him in a sea of happiness, so that nothing but bubbles of bliss can be seen on the surface; give him economic prosperity, such that he should have nothing else to do but sleep, eat cakes and busy himself with the continuation of his species, and even then out of sheer ingratitude, sheer spite, man would play you some nasty trick. He would even risk his cakes and would deliberately desire the most fatal rubbish, the most uneconomical absurdity, simply to introduce into all this positive good sense his fatal fantastic element. It is just his fantastic dreams, his vulgar folly that he will desire to retain, simply in order to prove to himself--as though that were so necessary-- that men still are men and not the keys of a piano, which the laws of nature threaten to control so completely that soon one will be able to desire nothing but by the calendar. And that is not all: even if man really were nothing but a piano-key, even if this were proved to him by natural science and mathematics, even then he would not become reasonable, but would purposely do something perverse out of simple ingratitude, simply to gain his point. And if he does not find means he will contrive destruction and chaos, will contrive sufferings of all sorts, only to gain his point!”