O Conflito de Visões em Mestre dos Mares
"Afinal, vocês querem os seus filhos cantando La Marseillaise?"
Abril — 1805
Napoleão é o senhor da Europa
Apenas a frota britânica está diante dele
Agora, oceanos são campos de batalha.
— Master and Commander: The Far Side of the World (2003)
Em matéria de gravidade, as ideias de uma pessoa precisam ser ponderadas pelo fator “o que vai acontecer com essa pessoa se ela estiver errada?”. Se nada de ruim acontecer, então a opinião não deve ser levada muito a sério. Por outro lado, se a vida dela depende da acurácia de seus palpites, então eles deveriam pesar muito1. E é por isso que poucas ideias pesam tanto quanto as do capitão de um navio2.
É esse senso de gravidade, de “tudo ou nada”, que faz com que filmes de aventuras marítimas sejam tão interessantes. “A Caçada ao Outubro Vermelho”, “Das Boot”, “Maré Vermelha” e tantos outros filmes mostram indivíduos organizados em pequenas comunidades políticas agindo em prol de uma missão grave e urgente. Nesse universo, cada palavra, pensamento, ato ou omissão faz a diferença entre sucesso e fracasso, entre vida e morte. No navio, não há espaço para fingimento, sinalização de virtudes ou pose. A tripulação, confinada numa pequena embarcação flutuando em um vasto oceano, está a algumas decisões erradas de se tornarem náufragos, cujas ideias, segundo um filósofo espanhol popularizado por um filósofo brasileiro, são as únicas que realmente importam. Sendo assim, as ideias dos marinheiros são as que estão mais perto de importarem.
Mais graves ainda são as ideias e convicções do comandante de um navio no começo do século XIX, uma época em que não existia GPS ou rádio e em que o navio de madeira dependia apenas da força dos ventos. Portanto, é seguro de dizer que as convicções do capitão Jack Aubrey no comando da HMS Surprise eram pesadíssimas e, talvez seja isso que torne “Mestre dos Mares: O Lado Mais Distante do Mundo” um dos melhores filmes do gênero.
I. As Visões e seus Representantes
Mas antes de falar sobre as convicções do capitão Aubrey é importante meditar sobre a origem ou fundamento das convicções de uma pessoa. Qualquer ação humana consciente está alicerçada em impressões explícitas ou implícitas sobre como o mundo funciona. Quando você decide atravessar uma rua movimentada, por exemplo, o que guia sua decisão sobre o momento certo atravessá-la é uma estimativa da quantidade, distância, posição e da velocidade dos carros que estão vindo em sua direção. Você tem intuitivamente uma noção baseada em premissas implícitas sobre o funcionamento dos aspectos físicos da realidade. Isso vale para quando você calcula a força e a distância necessárias para saltar uma poça de água entre o meio fio e o asfalto. Você faz isso e, na maioria das vezes, é bem-sucedido sem ter lido um livro de física.
Assim como nossas impressões sobre a física do mundo guiam nossas decisões cinemáticas, nossas impressões sobre a natureza humana e o funcionamento da sociedade guiam nossas atitudes na esfera social, política ou econômica. Em seu clássico3 intitulado “Conflito de Visões”, o economista Thomas Sowell explica que cada indivíduo possui certas crenças e “impressões” fundamentais sobre o mundo, as quais os instrui sobre como interpretar fatos e acontecimentos da vida em sociedade. Essas crenças formam visões de mundo que identificam quais são as relações de causa e efeito mais prováveis em cada situação e, com isso, possibilitam que o indivíduo possa agir e escolher racionalmente. Embora cada indivíduo possa ter uma visão de mundo própria — o que faz com que existam uma miríade de opiniões sobre qualquer assunto —, Sowell propõe que as visões podem ser classificadas em dois grandes grupos: as Visões Restritas (Constrained Visions) e as Visões Irrestritas (Unconstrained Visions). A divergência fundamental entre os dois grupos, segundo Sowell, é em relação a natureza humana.
A visão restrita da natureza humana pode ser definida como “pessimista”. Para ilustrá-la, Thomas Sowell recorre a uma meditação clássica do economista Adam Smith sobre nossas deficiências morais. Uma versão atualizada dessa meditação é a seguinte: É bem provável que você, caro leitor, tenha perdido mais noites de sono por causa do seu time de futebol ou por uma paixonite não correspondida do que pelas vítimas de um tsunami na Indonésia que matasse 300 mil pessoas. Segundo Smith, não é como se nós não nos importássemos com as vítimas do desastre natural. Nós apenas ficamos demonstravelmente mais tristes quando coisas meramente desagradáveis acontecem conosco do que quando coisas absolutamente terríveis acontecem com pessoas de outro continente.
A nossa consciência, nossa capacidade de nos colocarmos no lugar dos outros (nosso espectador imparcial, segundo Smith) é insuficiente para restringir nossas paixões. Roger E. Backhouse explica o problema levantado por Adam Smith: “Quando contemplamos nossas ações antes de agir, “nossas paixões” tendenciam nosso julgamento. Depois que uma ação foi tomada, por outro lado, o desejo de não pensar mal sobre nós mesmos nos levará ao viés.”4. Em resumo, o homem é intrinsecamente moralmente limitado.
Nesse mundo, uma boa forma de fazer os homens ajudarem uns aos outros é através de incentivos que apelem ao autointeresse. De fato, é isso que Adam Smith afirmava que o mercado fazia: o padeiro, o açougueiro e o cervejeiro trabalhavam uns para os outros não por benevolência, mas, sim, porque essa era a melhor maneira de atingirem seus próprios interesses. As boas instituições servem justamente para isso: alinhar incentivos de indivíduos fundamentalmente deficientes do ponto de vista moral para que eles, na prática, contribuam para o bem comum da comunidade, pouco importando se a intenção do sujeito era boa ou não5.
Em Mestre dos Mares, capitão Jack Aubrey, é um representante dessa visão. Uma cena que ilustra isso se passa ainda no começo do filme: À noite, na grande cabine do navio, Aubrey está jantando com os oficiais e, junto deles, também está o médico e naturalista dr. Stephen Maturin, amigo do capitão. No meio do jantar, Aubrey faz uma brincadeira com ele envolvendo um jogo de palavras:
“JACK: Você vê esses duas pragas, doutor?
[Ele aponta para um leve movimento entre as migalhas de um biscoito.]
STEPHEN: Eu vejo.
JACK: Qual dos dois você escolheria?
[A mesa fica tensa com antecipação a uma das “piadas” do Capitão. Stephen se concentra.]
STEPHEN: Não há um fiapo de diferença. Ambos são da mesma espécie de Gorgulhos.
JACK: Mas suponha que você tivesse que escolher?
STEPHEN: Nesse caso, eu escolheria a “praga” da direita, ela tem uma vantagem perceptível em comprimento e largura.
JACK: Aí está, eu o peguei. Você está completamente derrotado. Você não sabe que na Marinha você sempre deve escolher “das pragas, a menor”?
[Ele troveja com gargalhadas, o resto se junta a ele, sem fôlego com alegria, lágrimas de risos escorrendo pelos seus rostos.]”
Das pragas, a menor — ou, se utilizarmos o trocadilho original que funciona apenas em inglês, “dos males, o menor” (the lesser of two evils) — é um ditado popular cuja interpretação é a de que toda escolha envolve algum custo (algum mal) e, portanto, nos resta apenas escolher dentre todas as alternativas, aquela que custa menos. Para a visão restrita, as limitações morais e cognitivas do homem o impedem de achar soluções definitivas e sem custos para os problemas. Um dos lemas dessa visão segundo Sowell seria “não há soluções, apenas dilemas (trade-offs)”. As falhas do mercado, por exemplo, devem ser comparadas com as falhas das alternativas ao mercado6.
**
Como vocês podem imaginar, se a visão restrita é pessimista, a visão irrestrita é otimista em relação a natureza humana. Segundo ela, existe um potencial moral não realizado no homem. Se ele for desenvolvido, o indivíduo não só colaborará com o bem comum (algo também possível na visão restrita), mas também fará isso de forma benevolente, colocando os interesses dos outros acima do seus. Um exemplo dessa visão pode ser encontrado na famosa carta “Socialismo e o homem em Cuba” (El socialismo y el hombre en Cuba). Nela, Che Guevara argumentava que, através da revolução socialista, surgirão “novos homens e mulheres” com uma nova consciência, a qual dispensará a necessidade de incentivos para que cada um cumpra seu dever7. O revolucionário é pedagógico ao expor sua visão irrestrita:
“Existe o perigo de que a floresta não seja vista por causa das árvores. O sonho utópico de que o socialismo possa ser alcançado com a ajuda das ferramentas insuficientes que nos foram deixadas pelo capitalismo ([…], a lucratividade, o interesse material individual como alavanca, etc.) pode nos levar a um beco sem saída. Quando você acaba lá, depois de ter viajado por um longo caminho com muitas encruzilhadas, é difícil determinar exatamente onde você fez a escolha errada. Enquanto isso, a base econômica que foi estabelecida fez o seu trabalho de minar o desenvolvimento da consciência. Para construir o comunismo, é necessário, simultaneamente com as novas bases materiais, construir o novo homem e a nova mulher.
Se para a visão restrita as instituições são a única forma de fazer homens imperfeitos cooperarem de alguma forma, para a visão irrestrita essas instituições são justamente a causa do problema. Enquanto para os primeiros as instituições “são o melhor que podemos fazer” dada a nossa natureza, para os últimos elas apenas estimulam a busca pelo autointeresse, impedindo o aprimoramento moral. Mais do que isso, as instituições são vistas como mecanismos de dominação de um homem sobre os demais. “O homem nasce livre e em todos os lugares ele está acorrentado”, diria Rousseau, uma frase que, segundo o Sowell, resume bem a visão irrestrita. Em Mestre dos Mares, essa visão otimista é representada pelo dr. Stephen Maturin.
A piada do capitão Jack Aubrey na mesa a respeito das pragas tinha como objetivo reanimar o espírito do doutor. Stephen sentira-se deslocado do grupo, formado por oficiais da marinha, por causa de uma história que o capitão acabara de contar. Jack falou da vez em que ele conheceu ninguém menos que Lorde Nelson.
Lorde Nelson é um dos maiores heróis da Inglaterra e sua estátua pode ser vista no topo de uma coluna de 52 metros de altura na praça Trafalgar Square, em Londres. Aliás, Trafalgar foi uma decisiva batalha naval travada durante as guerras napoleônicas na costa da Espanha, na qual o almirante Nelson faria o maior sacrifício que um homem pode fazer por seu país — entregar a própria vida em batalha. Não é preciso dizer que a história do encontro do capitão com a lenda da marinha inglesa atraiu a atenção de todos os presentes no jantar. Aubrey contou que serviu com o almirante na batalha do Nilo e que em certa ocasião: “… Alguém ofereceu a ele [Lord Nelson] um casaco em uma noite fria e ele recusou, ele disse que estava bastante quente — que o zelo pelo rei e pelo país o mantinham aquecido’ (…) Parece absurdo, eu sei, e se fosse outro homem você gritaria: "Oh, o que coisa lamentável" e descartaria como mero entusiasmo, mas com ele você sentia o seu coração brilhar.”
“Um brinde ao Lorde Nelson”, disse Mowett, um aspirante sênior que estava na mesa. Todos brindaram, mas era visível a falta de entusiasmo do dr. Stephen. O médico do navio não era um grande apreciador do patriotismo. Adepto da visão otimista, Stephen Mautrin acredita, assim como Che Guevera, na capacidade de aperfeiçoamento do homem e, portanto, compromissos e laços de lealdade que o vinculem a uma nação, comunidade ou família são irracionais.
De acordo com Thomas Sowell, a visão otimista ou irrestrita tem uma crença muito grande na capacidade do homem de acumular cada vez mais conhecimentos racionais. Sendo assim, adeptos dessa visão esperam que o homem do futuro sempre terá mais informações e será mais virtuoso do que o passado. Nesse contexto, tradições e promessas que o prendam ao passado, impedindo-o de agir em função do que é “mais racional agora”, devem ser evitadas. O patriotismo, por exemplo, seria um sentimento irracional e indesejável na medida em que leva o patriota ter uma preferência, um viés, pelo seu país e por seus compatriotas em detrimento dos demais povos. Para a visão restrita, por outro lado, o patriotismo8 é uma instituição que facilita a cooperação social de um determinado grupo de pessoas ao longo do tempo. Ele ajuda a provisão de defesa nacional, por exemplo, que é um bem público e, como tal, a provisão depende em grande parte de uma coordenação social para minimizar o comportamento free rider.
Aliás, o motivo que levava o capitão Jack Aubrey e sua tripulação ao lado mais distante do mundo era justamente um assunto de defesa nacional. O ano era 1805, momento em que Napoleão planejava invadir a Inglaterra. A batalha pela supremacia dos mares era a única coisa que impedia esse plano de ser concretizado e a missão do comandante da H.M.S. Surprise era interceptar um navio francês chamado Acheron que estava atacando navios comerciais ingleses.
É interessante notar que o Conflito de Visões não se dá apenas no microcosmos do navio. A disputa entre França e Inglaterra retratada no filme também se insere nesse tema. De um lado, temos a França de Napoleão que foi o resultado da Revolução de 1789, cuja inspiração iluminista a colocaria dentro da visão de mundo irrestrita. Do outro, temos a Inglaterra, a terra de Edmund Burke, expoente da visão restrita e autor do famoso panfleto “Reflexões Sobre a Revolução Francesa”, o qual além de fazer duras críticas ao que acontecera na França, também fazia uma defesa do sistema inglês, baseado na tradição e costumes. Acheron era a França de Rousseau, da igualdade, do progresso, da razão com erre maiúsculo e da crença no potencial ilimitado do homem. O H.M.S. Surprise era a Inglaterra de Burke, das hierarquias, da valorização dos costumes, da experiência e do ceticismo em relação a natureza humana.
Jack Aubrey, a marinha britânica, dr. Mautrin e a França revolucionária são personagens e elementos do filme que representam visões de mundo distintas, variando em maior ou menor grau na escala criada por Thomas Sowell. No entanto, nenhum momento desse épico naval o choque de visões fica tão evidente quanto na subtrama do Aspirante Sr. Hollom.
II. O caso do Aspirante Sr. Hollom
O Aspirante Hollom simplesmente não estava apto para o serviço na marinha. Ele tinha vinte e quatro anos e ainda era um Aspirante, o que, na marinha inglesa, é um péssimo sinal9. Em diversas ocasiões do filme sua inaptidão é demonstrada. A demora em anunciar o toque ‘a seus postos’ custou minutos preciosos da tripulação para a primeira batalha contra o Acheron, na qual todos os homens sob seu comando foram mortos. Além disso, a hesitação na hora de ajudar o capitão do mastro principal, William Warley, a recolher as velas durante a travessia do Cabo Horn contribuiu para que o mastro se rompesse com o vento e fosse jogado ao mar, junto com Warley, que infelizmente não pode ser resgatado. Diante destes fatos, não é a toa que a tripulação simplesmente não o respeitava:
“HOLLOM: Tenho tentado conhecer um pouco os homens, senhor, ser amigável, mas eles ficaram contra mim. Sempre cochichando quando eu passo, me olhando de um jeito estranho. Mas vou corrigir isso, ser mais duro com eles daqui pra frente.
JACK: Você não pode fazer 'amizades' com os marinheiros do mastro de proa, eles vão acabar te desprezando. Nem precisa ser um tirano. O que eles querem é liderança, força, respeito.”
Na ordem social que vigorava naquele pequeno navio, oficiais tinham alguns privilégios, os quais eram aceitos pela tripulação porque sob esses mesmos oficiais pesavam responsabilidades maiores também. Os marinheiros não viam Hollom cumprindo com seu dever e, portanto, não o respeitavam. A crise de autoridade chegou ao ápice quando o carpinteiro Nagel, ainda irritado com a morte de seu amigo Warley, deliberadamente esbarra no Asipriante Hollom, fazendo-o cair no convés na frente de todos. O Capitão Jack observa a cena e imediatamente ordena a detenção de Nagel e, mais tarde, ordena a execução da punição por insubordinação: Chibatadas na frente de toda tripulação.
O açoitamento de Nagel é mais uma ocasião em que o conflito de visões aparece. O Capitão deveria ser misericordioso com o carpinteiro, ou deveria aplicar a punição que consta no capítulo trinta e seis do Articles of War? Nagel e o resto da tripulação estavam passando por um grande stress. O navio francês a ser capturado estava em uma classe superior ao do H.M.S. Surprise e este último quase foi derrotado no primeiro encontro, conseguindo fugir apenas por uma combinação de sorte e sagacidade de seu Capitão. Até os oficiais superiores reconheciam que missão de perseguir e interceptar o Acheron era quase impossível. Não fosse a determinação de Jack Aubrey em persegui-lo até o “Lado Mais Distante do Mundo”, eles já estariam a caminho de casa. Além disso, a tripulação e, em particular Nagel, ainda sofria a perda do amigo que morrera afogado na travessia do Cabo Horn e, aos olhos deles (e, convenhamos, aos olhos de quem assiste o filme também10), a omissão de Hollom tornava-o parcialmente culpado. Por fim, naquele momento, a nau estava parada no meio do oceano, pois não havia vento algum, não havia nem sequer uma nuvem, apenas o sol escaldante sob suas cabeças. Sob essas condições de stress e luto, não seria compreensível a atitude de Nagel e também uma atenuação da pena? Essa era a posição do representante da visão irrestrita, o dr. Stephen, como podemos ver em um dos melhores diálogos do filme e no qual o conflito de visões aparece de forma cristalina:
A GRANDE CABINE - CREPÚSCULO
[JACK está ajustando uma nova corda do violino. A cena se amplia para revelar STEPHEN sentado em frente com seu violoncelo.]
JACK: Eu não sou um capitão que castiga com chibatadas.
STEPHEN: Hollom é um bode expiatório para toda a má sorte, real ou imaginária, nesta viagem… Eles estão exaustos. Esses homens estão exaustos. Você os pressionou demais.
JACK: Stephen, eu te convido para esta cabine como meu amigo. Não para criticar nem comentar sobre meu comando.
STEPHEN: Bem, devo deixá-lo até que esteja em um estado de espírito mais harmonioso?
JACK: O que você quer que eu faça?
STEPHEN: Jogue o grogue do navio fora.
JACK: Parar com o grogue deles?
STEPHEN: Nagle estava bêbado quando insultou Hollom.
JACK: Parar anos de privilégio e tradição? Prefiro tê-los completamente bêbados do que enfrentar um motim.
STEPHEN: Eu começo a compreender bem os motins. Homens arrancados de suas casas, confinados por meses a bordo de uma prisão de madeira...
JACK: Respeito seu direito de discordar de mim, mas só posso me dar ao luxo de ter um rebelde neste navio. Odeio quando você fala do serviço dessa maneira. Isso me deixa muito deprimido. Você acha que eu quero castigar Nagle? Um homem que cortou as cordas que enviaram seu colega para a morte? Sob ordens? Sob minhas ordens?! Você não vê? As únicas coisas que mantêm este mundo de madeira unido são o trabalho árduo...
STEPHEN: Jack, o homem falhou em saudar.
JACK: Existem hierarquias até mesmo na natureza.
STEPHEN: Não há desdém na natureza. Não há...
JACK: Os homens devem ser governados! Muitas vezes não de forma sábia, mas governados, no entanto.
STEPHEN: Essa é a desculpa de todo tirano na história, de Nero a Bonaparte. Eu, por exemplo, sou contra a autoridade. É a fonte de miséria e opressão.
JACK: Você veio ao lugar errado em busca de anarquia, irmão.
Existem diversos elementos interessantes nesse diálogo, mas sua motivação central, a razão dele existir é a punição a ser imposta ao carpinteiro Nagel. Afinal, ela é justa? Segundo Thomas Sowell, há uma grande diferença em como as duas visões em conflito enxergam a Justiça. Para a visão restrita, ela “significa a aderência a regras pré-estabelecidas, enquanto na visão irrestrita, algo é justo ou injusto de acordo com o resultado final.”11 Jack Aubrey está aplicando a regra dos Articles of War, de conhecimento comum a todos os marinheiros, e, portanto, está fazendo justiça. Stephen, por outro lado, olha apenas para o resultado, o açoitamento de um bom marinheiro que está exausto, fora de si e sob grande stress, alguém vítima das circunstâncias. Stephen enxerga o “potencial" de Nagel, o homem que ele seria caso a situação não fosse desfavorável.
A divergência entre as duas abordagens recaí sobre a fundamental diferença a respeito da natureza humana. O capitão Jack entende que o homem é limitado na sua capacidade de julgamentos morais e que seguir regras pré-estabelecidas é uma forma de corrigir os excessos de homens falhos por natureza. O doutor Stephen acredita na capacidade do homem de discernir as nuances e detalhes de cada situação, de tal forma que as regras pré-estabelecidas podem ser adimplidas ou não conforme o caso. Enquanto a visão irrestrita é otimista em relação a capacidade do homem discernir caso a caso o que é melhor fazer, a visão restrita estima que o custo de fazer tais julgamentos é proibitivo. Além disso, conforme explica Thomas Sowell:
A visão restrita avaliará seus custos de processo em termos de como essa violação das regras desorganiza as expectativas de muitos outros e altera adversamente sua conduta futura, à medida que perdem a confiança na confiabilidade geral das regras e acordos existentes, bem como nas regras e acordos futuros.
(Sowell, Thomas. "A Conflict of Visions: Ideological Origins of Political Struggles" (pp. 97-98). Basic Books. Edição do Kindle.)
Regras cujas violações não são sempre punidas tendem a ser ineficazes para dissuadir o comportamento a ser disciplinado. Para o capitão, se a punição de Nagel fosse extinta, isso estimularia, ainda que marginalmente, a insubordinação dos outros marinheiros. Todos aqueles que se sentissem nas mesmas condições que Nagel e todos aqueles que julgassem que tal oficial fosse indigno do posto poderiam se considerar no direito de serem insubordinados.
Além do respeito ao estabelecido, ao acordado previamente, a visão restrita também tende a considerar a tradição e os costumes na hora de tomar decisões. Homens limitados precisam se alicerçar sobre o conhecimento acumulado de gerações, os quais muitas vezes não podem ser articulados de forma racional. Esse tipo de conhecimento é o que Thomas Sowell chama de “Racionalidade Sistêmica”. Um modo de agir no qual nenhum indivíduo em particular consegue exatamente explicar o nexo causal entre sua ação e a consequência esperada. Sua ação é justificada pelo processo social que a guiou. Um exemplo de racionalidade sistêmica é o fato curioso de que quando há uma guerra no oriente médio, os moradores de uma cidadezinha no interior do Peru começam a usar mais bicicleta e menos automóveis para ir ao trabalho. Nenhum habitante daquela região saberia explicar exatamente o motivo de porquê ser necessário que a sociedade economize gasolina, mas, no entanto, ele é levado pelo processo social, o sistema de preços, a fazê-lo.
Na visão otimista, a tradição e outros processos sociais são preteridos ao que Sowell chama de “Racionalidade Articulada”, ou seja, aquele tipo de conhecimento que um indivíduo consegue articular racionalmente, consegue explicar o nexo causal entre a ação e a consequência. Quando dr. Stephen sugere ao capitão que jogasse fora a bebida alcoólica (grogue) como solução para os problemas de insubordinação, era esse tipo de raciocínio que ele tinha. Homens alcoolizados estão mais dispostos a criar confusão. Stephen ignorava totalmente a racionalidade sistêmica do capitão. Jack Aubrey entendia que, por mais claro que o nexo causal entre embriaguez e confusão fizesse sentido, a tradição naval de servir uma ração de rum para os marinheiros deveria ser respeita justamente porque ela é antiga e, portanto, validada pelo tempo e experiência.
O debate prossegue com o capitão tentando explicar sua visão. Respeito as regras, tradição e disciplina são as únicas coisas que impedem a anarquia dentro de um navio. Novamente, para a visão pessimista, o processo é mais importante do que impedir ou prevenir um resultado questionável. No livro, Sowell usa uma frase de Adam Smith que é ilustrativa: "A paz e a ordem da sociedade são mais importantes do que até mesmo o alívio dos miseráveis."12. Sim, a incompetência do aspirante Hollom eram um problema para o funcionamento do navio e, sim, Nagel era um marinheiro competente e castigá-lo não é agradável a ninguém, mas, mesmo assim, o bom funcionamento do processo era mais importante. A disciplina e as regras eram o que garantia a paz e a ordem no navio e justamente quando elas são difíceis de serem cumpridas é que seu efeitos disciplinante e apaziguador são maiores, afinal, qualquer um é capaz de cumprir regras que geram um resultado agradável e popular.
Essas mesmas instituições que Jack Aubrey considera a solução para o problema da natureza humana são identificadas como o problema para o dr. Stephen. “Não há desdém na Natureza”, diz ele, uma afirmação que vai ao encontro do lema otimista de Rousseau sobre a bondade natural do homem. “Homens precisam ser governados”, responde o capitão, cuja frase está muito mais em concordância com a famosa citação de James Madison nos Federalists Papers: "Mas o que é o governo, senão a maior de todas os reflexões sobre a natureza humana? Se os homens fossem anjos, nenhum governo seria necessário." O tipo de governo de um povo depende de sua visão sobre a natureza humana. Para Jack, homens não são anjos e por isso precisam ser governados.
III. Qual é visão correta?
Um impulso quase natural quando nos deparamos com um conflito é nos perguntarmos qual dos lados da briga está com a razão. A natureza do homem é maleável e portanto aperfeiçoável ou é rígida e, portanto, irrecuperável? Em Conflito de Visões, Thomas Sowell torna essa pergunta difícil de responder, pois ele mesmo reconhece que essa classificação de visões não é binária e, sim, uma espécie de régua que vai de um extremo ao outro. Segundo ele, no extremo da visão restrita está a ideia de ausência total de livre arbítrio, o homem é determinado pela natureza, pelo cosmos ou alguma outra entidade. No extremo oposto, o homem é uma espécie de deus e, portanto, é capaz de criar a realidade a sua imagem e semelhança. Além disso, existem também teorias híbridas que contém elementos de ambas as visões como, por exemplo, o Marxismo13.
A escala de visões é útil, pois consegue dar conta da maior parte das visões de mundo que observamos nos debates públicos. Por exemplo, conservadores e a “direita” estão mais para o lado da visão restrita, enquanto progressistas e a “esquerda” estão predominantemente do lado irrestrito. Apesar da utilidade, as próprias definições dos extremos já são pistas de que talvez nenhuma visão, seja ela mais restrita ou mais irrestrita, parece ser capaz de dar conta da realidade inteira. A coisa parece ser mais complicada do que parece e é o que veremos a seguir.
§1 A Maldição de Jonas
[Stephen é chamado por Blankeney. Algum marinheiro não está se sentindo bem.]
BLAKENEY: Senhor! Senhor, é o Sr. Hollom.
[Stephen vai até o Sr. Hollom e o examina. Ele volta para falar com o capitão.]
STEPHEN: Não há nada de errado fisicamente com ele. Ele acha que foi amaldiçoado.
JACK: Marinheiros podem tolerar muita coisa, mas não um Jonas.
STEPHEN: Meu Deus. Você também acredita nisso.
JACK: Nem tudo está nos seus livros, Stephen.
A maldição da qual os marinheiros falavam era inspirada em um dos livros da Bíblia chamado “Jonas” e, mais especificamente, nos acontecimentos do primeiro capítulo desse livro. A história desse profeta tem elementos de comédia, mas para perceber isso você precisa entender um pouco de história bíblica14. O capítulo começa abruptamente com Deus pedindo a Jonas que vá até a cidade chamada Nínive para fazer o que profetas costumam fazer: denunciar a corrupção generalizada do lugar e pedir que o povo se converta. O problema é que Nínive (atualmente Mossul, no Iraque) ficava no meio do império Assírio, o qual não era exatamente um povo amigo de Israel. Apenas para dar um pouco de senso das proporções, é como se Deus tivesse pedido para alguém sair de Londres e ir até Nuremberg, em 1940, pregar contra o partido nacional socialista. A frase que se segue imediatamente a ordem divina é a que tem o timing cômico perfeito: “Porém, Jonas se levantou para fugir da presença do Senhor para Társis.” Társis é uma cidade fenícia que ficava a oeste de Israel — do outro lado do mar mediterrâneo. Ou seja, a primeira coisa que Jonas fez quando Deus pediu a ele que fosse para uma cidade ao leste, foi pegar um barco em direção ao extremo oposto. O barco que levava Jonas para Társis começa a passar por uma tempestade com fortes ventos. Os marinheiros desesperados tentam de tudo para impedir que o navio naufrague, até mesmo “lançar as sortes” para saber quem é o responsável por essa tempestade; “e a sorte caiu sobre Jonas”. Quando o interrogaram a respeito da tempestade ele calmamente explica a situação: a tempestade foi culpa dele, afinal ele estava fugindo do seu dever. Além disso, ele mesmo dá a sugestão de como resolver o problema: bastaria atirá-lo ao mar que a tempestade passaria. E assim o fizeram. E o mar e a tempestade se acalmaram.
Na história de Jonas, a tripulação inteira do navio estava sendo punida pela omissão de um único homem, Jonas. Não é necessária muita imaginação para os marinheiros associarem essa história com a falta de sorte do H.M.S. Surprise e com a inépcia também de um único homem, Sr. Hollom. Era isso que Joe Plaice, um dos marinheiros mais velhos do navio e respeitado por seus colegas fez:
DEQUE INFERIOR - NOITE
[Todos os olhares estão em JOE PLAICE. Ele fala das sombras.]
JOE PLAICE: “É ele, não é? O Jonas. Ele que está causando isso. Ele está chamando, não estão vendo? Toda vez que ele está de vigia, aquele navio aparece. Você vai vendo. A qualquer momento esta noite, aquele navio fantasma vai aparecer. E vai nos levar a todos com ele, direto para o lugar quente.”
Joe é o representante de um tipo extremo de visão restrita. Extremo e antigo. Para entendê-la precisamos cavar um pouco mais fundo do que o professor Sowell se propôs em seu livro.
Em Ordem e História, o filósofo Eric Voeglin, afirma que “a ordem da história é a história da ordem”. Com essa frase, ele queria dizer que sentido ou a concatenação da história humana não é função de alguma lei universal como acreditam os materialistas históricos por exemplo, e, sim, uma cronologia das diversas tentativas do ser humano entender a ordem da realidade. Por isso, a chave para entender a ordem da história era estudar como as diversas civilizações buscaram compreender o papel do homem no que Voeglin chamou de “Comunidade do Ser”, composta pela natureza, sociedade, homem e Deus.
Segundo Voeglin, as primeiras civilizações eram “Impérios Cosmológicos”. Nelas havia a ideia de que natureza e sociedade eram uma coisa só. Os acontecimentos da sociedade e da natureza estavam interligados. Secas, enchentes, eclipses solares estavam diretamente relacionados com a ordem social. A quebra de mandamentos, ritos e etc. que abalassem o funcionamento da comunidade teriam uma repercussão no cosmos, na natureza. Essa ligação entre o cosmos e a sociedade coloca o indivíduo como apenas uma peça na engrenagem. Ele tem um papel pré-determinado a cumprir. Com o risco de incorrer em anacronismo, parece que essa percepção a cerca do papel do homem na realidade se encaixaria no lado mais extremo da visão restrita. Ou, melhor dizendo, ela está na raiz dessa visão.
Para Joe Plaice, não pareceria haver distinções entre o que acontecia com o navio e o que acontecia com a ordem social vigente dentro dele. Uma engrenagem mal colocada, alguém que não faz seu trabalho direito, estava causalmente conectado a uma tempestade, a ausência de ventos e etc. Cosmos e sociedade estavam integrados. Bons ventos só voltariam a soprar se a ordem social fosse reparada. A engrenagem que estava desajustava se chamava Hollom.
Neste momento da narrativa e deste ensaio, faz sentido voltar a uma expressão que o dr. Stephen utilizou quando debatia com o capitão na grande cabine. “Hollom é um bode expiatório para toda a má sorte, real ou imaginária, nesta viagem…”, disse o doutor. O bode expiatório é o bode que recebe todos os problemas da comunidade e é sacrificado ou expulso da comunidade para que a ordem social volte a reinar. Algum tipo de sacrifício era necessário para trazer ordem. Era assim que as sociedades cosmológicas tentavam reparar as crises. O mais incrível é que até mesmo Hollom, o próprio bode expiatório, se enxergava como o problema. Um problema ele mesmo decide resolver:
CASTELO DE PROA, MAIS TARDE - NOITE
[BLAKENEY está perto da proa olhando para a noite. Uma figura se aproxima por trás e coloca a mão em seu ombro.
BLAKENEY quase pula de susto.]
BLAKENEY: Sr. Hollom! Você me assustou tanto. Você está melhor agora?
[A respiração de HOLLOM parece realmente mais fácil.]
HOLLOM: Muito melhor, obrigado.
BLAKENEY: O capitão acha que nós vamos conseguir nosso vento amanhã.
HOLLOM: Tenho certeza disso.
[Ele se abaixa, pega uma bola de canhão de 12 libras.]
HOLLOM (CONT'D): Você sempre foi muito gentil comigo. Adeus, Blakeney.
[Com um movimento repentino, ele está na amurada, então ele pula para o lado com a bola de canhão em seus braços.]
[BLAKENEY olha para baixo com choque ao ver o rosto pálido de HOLLOM se afastando dele nas profundezas. Leva um momento antes que ele reúna sua coragem para gritar -]
BLAKENEY: Homem ao mar!
O Aspirante Hollom se joga ao mar, assim como Jonas fora jogado na história bíblica. Entre o indivíduo e a comunidade política, prevalece a última, assim como nas sociedades cosmológicas de que Voeglin falava. É como se Hollom aceitasse a sua condição de bode expiatório, como se aceitasse que ele é a causa da má sorte da H.M.S. Surprise e sua tripulação. Ele não é apenas um oficial ruim no seu trabalho, mas, sim, o elemento de perturbação da ordem natural.
Neste momento, é útil trazer para a análise o francês Rene Girard. O filósofo argumenta que em sociedades antigas vigorava o ciclo de violência mimética. Em linhas muito gerais, sua teoria diz que em qualquer sociedade há uma tendência natural ao conflito. Essa tendência surge do desejo mimético, ou seja, o desejo de imitar alguma outra pessoa, seja cobiçando suas coisas, seu status social ou qualquer outro elemento dela. O conflito nasce da impossibilidade material de todos terem ou serem aquilo que desejam. O conflito cresce até que a comunidade identifica em uma pessoa a causa de todos os problemas e a transforma em um bode expiatório, o qual deve ser sacrificado. Após o sacrifício, a comunidade fica apaziguada por um tempo, até que o ciclo recomece. Segundo Girard, o mundo antigo é caracterizado em grande parte por isso: a violência justificada da comunidade contra uma ameaça a sua paz.
Ambas as interpretações, de Girard ou de Voeglin, são aplicáveis ao raciocínio dos marinheiros daquele navio. Para eles, a comunidade política do H.M.S. Surprise era uma comunidade do tipo antiga. Uma sociedade cosmológica, na qual perturbações na ordem social eram resolvidas com a violência em nome da comunidade contra um bode expiatório. A visão restrita, tomada em sua versão mais extrema, é justamente a de uma sociedade em que para atingir ordem e paz social ela está disposta a praticar a violência contra aquele que é visto com o causador da desordem. Para essa visão, as instituições dessa sociedade são absolutas, na verdade, elas mesmas fazem parte da própria natureza.
Agora, vamos contrastar essa visão extrema com a visão irrestrita. Um sujeito adepto dessa visão e que observasse a tragédia do senhor Hollom ficaria absolutamente horrorizado. Para ele, Hollom e todos os marinheiros seriam uma vítima das instituições. O problema seria a cultura da marinha inglesa, a ignorância supersticiosa, o imperialismo inglês, o capitalismo, enfim, todos as instituições que dão a moldura para a ação dos indivíduos. Elas corromperam Hollom, o capitão, o carpinteiro, Joe Plaice e todos os outros. Vemos um pouco dessa visão na cabeça do doutor Stephen quando ele diz: “Eu começo a compreender bem os motins. Homens arrancados de suas casas, confinados por meses a bordo de uma prisão de madeira...”. Para o radical da visão irrestrita, a solução para os problemas da H.M.S. Surprise seria uma revolução. O extremo da visão irrestrita não vê limitação alguma da natureza para os seus objetivos. Não há ordem pré-estabelecida, mas sim apenas aquilo que o homem criou, ou seja, só há história, a qual chegará ao ápice quando ele assumir o controle. Para chegar lá, “fuzilamos e seguiremos fuzilando” como diria Che Guevara, adepto da visão irrestrita radical.
Se na visão irrestrita encontramos um revolucionário, o que encontramos na visão restrita é o seu oposto. O adepto da visão restrita quer restringir as ambições do revolucionário. Girard e tantos outros teóricos identificam um símbolo desse restritor na própria Bíblia, mais especificamente em 2 Tessalonicenses 2:3-7. Ela é uma carta que o apóstolo Paulo escreveu para os membros da igreja de Tessalônica, na qual ele fala sobre a segunda vida de Cristo. O trecho fundamental diz o seguinte:
"Esse dia não virá a menos que a rebelião venha primeiro e o ímpio seja revelado, aquele destinado à destruição. Ele se opõe e se exalta acima de todo suposto deus ou objeto de adoração, de modo que ele toma assento no templo de Deus, declarando-se ser Deus... Vocês sabem o que agora o restringe, para que ele seja revelado no seu tempo. Pois o mistério da iniquidade já está em ação, mas apenas até que aquele que agora o restringe seja removido."
O termo em grego utilizado na carta para “aquele que agora restringe” é katechon15, uma expressão que virou um conceito de filosofia política. Wolfgang Palaver, um estudioso de René Girard explica como o filósofo francês entendia essa figura:
"O katechon restritivo é uma força paradoxal que podemos comparar à superação violenta da violência no mecanismo do bode expiatório. O katechon, assim como o mecanismo do bode expiatório, é composto pelo mesmo mal que ele próprio tenta restringir."
(…)
"A figura do katechon pode nos ajudar a entender melhor a realidade política contemporânea com suas múltiplas divisões e antagonismos. Até certo ponto, nosso sistema de estados nacionais mostra que ainda estamos vivendo sob a proteção da ordem katechôntica. (…) Aqueles que temem o caos iminente que segue enfraquecendo as formas tradicionais de política talvez permaneçam apoiando a ordem katechôntica e implementem todos os recursos disponíveis (…) para preservar a harmonia social."
Palaver, Wolfgang. René Girard's Mimetic Theory (Studies in Violence, Mimesis & Culture) (p. 253 e p.254). Michigan State University Press. Edição do Kindle.
Sejam as visões revolucionárias ou restritivas, ambas usam de violência para atingir seus objetivos, a diferença é que a primeira faz a violência em nome da vítima e a segunda em nome da comunidade. Che Guevara mata em nome da classe oprimida, vítima do sistema capitalista, enquanto o Capitão Nascimento mata para proteger a comunidade dos agentes desestabilizadores.
A classificação de Thomas Sowell encontra similaridades com as definições simbólicas de direita e esquerda feita pelo filósofo Olavo de Carvalho em a A Nova Era e a Revolução Cultural. Na introdução do livro, o filósofo coloca a gravura de William Blake que retrata os dois monstros bíblicos que aparecem no Livro de Jó, Beemot e Leviatã:
O primeiro [Beemot] imperando pesadamente sobre o mundo, o maciço poder de sua pança firmemente apoiada sobre as quatro patas, o segundo [Leviatã] agitando-se no fundo das águas, derrotado e temível no seu rancor imponente. (…) Beemot é o peso maciço da necessidade natural, Leviatã é a infranatureza diabólica, invisível sob as águas ~ o mundo psíquico ~ que agita com a língua.
(…)
No plano da História mais recente, isto é, no ciclo que começa mais ou menos na época do Iluminismo, essas duas forças assumem claramente o sentido do rígido conservadorismo e da hübris revolucionária. Ou, mais simples ainda, direita e esquerda.
Carvalho, Olavo de. A Nova Era e a Revolução Cultural (p. 11 e 12). Vide Editorial. 4ª Edição.
Beemot é o símbolo da visão restrita. A visão que enxerga as limitações do homem e, portanto, a sua necessidade de se adequar a uma ordem maior do que ele, seja essa ordem divina ou não. Leviatã, por outro lado, é o símbolo da visão irrestrita. A visão em que o homem tem um potencial ilimitado e qualquer tentativa de se adequar a realidade através de ordem e instituições é uma tentativa de limitar o potencial humano. Me parece claro que a distinção criada por Thomas Sowell vai ao encontro com da tese exposta em O Jardim das Aflições, por Olavo de Carvalho, segundo a qual “direita” e “esquerda” são braços antagônicos em função de ênfases distintas de aspectos da realidade. Do lado da visão restrita, temos o cosmos, as leis físicas, experiência e a natureza. Do lado da visão irrestrita, a humanidade, as leis da razão, pensamento e a criação. Um exemplo prosaico disso é o debate sobre o diferencial de salário entre homens mulheres. Adeptos da visão restrita colocam ênfase nas diferenças naturais entre os sexos para explicar o diferencial, ao passo que os adeptos da visão irrestrita colocam ênfase na “criação”, ou seja, no condicionamento social das mulheres. Outro exemplo é a ideia de combate a criminalidade. A visão restrita entende que a única forma de impedir crimes é tornar custoso praticá-los e isso envolve o uso da força. A visão irrestrita, por outro lado, vê a criminalidade como um problema social fruto de instituições que corrompem os homens.
Para além do conflito de visões
Para Rene Girard, foi o cristianismo que aboliu o ciclo de violência mimética. A história contada nos evangelhos é diferente do que o mundo antigo estava acostumado. A vida, paixão e morte de Jesus Cristo é contada sob a perspectiva da vítima sacrificial e não da comunidade que a sacrifica. Segundo o filósofo francês, um de seus efeitos foi desnudar o mecanismo antigo que preserva a paz e a ordem social. A “superação violenta da violência” dá lugar uma nova proposta de lidar com os conflitos, baseada na imitação de Jesus Cristo, o modelo definitivo fundado no amor a Deus e ao próximo16.
Uma das grandes cenas de Mestre dos Mares ilustra justamente a obsolescência do ciclo mimético. No dia seguinte a morte do Sr. Hollom, ao amanhecer, o capitão Jack Aubrey, reúne toda a tripulação do navio para falar sobre o ocorrido:
CONVÉS - AMANHECER
[A tripulação está reunida no convés. JACK está de pé junto ao púlpito. KILLICK lhe entrega uma Bíblia aberta na história de Jonas.
JACK olha, depois devolve para KILLICK.]
Killick, o auxiliar do capitão, também era um marinheiro veterano e interpretou os acontecimentos envolvendo o sr. Hollom do mesmo jeito que Joe Plaice: a maldição havia sido desfeita com o sacrifício do aspirante. É por isso que ele entrega ao capitão Jack Aubrey a bíblia aberta no capítulo de Jonas. A mistura entre violência mimética e cristianismo é o que Rene Girard identificava como “cristianismo sacrificial”, o qual seria uma perversão do sentido autêntico da mensagem cristã. Aubrey, no entanto, tem uma compreensão melhor sobre o significado do sacrifício de Cristo e, sendo assim, faz uma prece muito mais adequada:
JACK: O fato é… Nem todos nós nos tornamos os homens que um dia esperávamos ser. Mas todos somos criaturas de Deus. Se alguns de nós falaram mal do Sr. Hollom, ou pensaram mal dele, ou o falharam em termos de companheirismo, então pedimos o seu perdão, Senhor, e pedimos pelo dele.
[Fechando nos rostos da tripulação - KILLICK, HIGGINS, NAGEL, CALAMY, BLAKENEY e finalmente Stephen.]
JACK (CONT): Amém.
TRIPULAÇÃO (murmura envergonhada): Amém.
É após a prece, e somente após a prece, que o vento começa a soprar e, com ele, o H.M.S. Surprise pode novamente continuar com a sua missão. A sorte de seus tripulantes só começou a mudar quando o ciclo de violência mimética foi desmascarado pelo ato de contrição guiado pelo capitão.
O episódio de Hollom é uma demonstração das limitações da visão restrita. O pessimismo exacerbado a respeito do potencial humano gera um mundo sem misericórdia. “Misericórdia para o culpado é crueldade com o inocente”, diz a frase atribuída ao Adam Smith17. Sim, o aspirante Hollom era incompetente e sua incompetência gerou muitos problemas, mas, ainda assim, ele era uma pessoa dotada de livre arbítrio e, por isso, dotada de alguma capacidade de escolher o bem. O problema é que a visão restrita extrema não acredita nessa capacidade e teme que, ao se oferecer misericórdia, o delicado sistema de instituições que protege a ordem social entre em colapso. A misericórdia enfraquece o Katechon, enfraquece o Beemot e sem eles, não há nada para nos proteger do ímpeto revolucionário da visão irrestrita.
O problema da absolutização da visão restrita é que ela pode levar a problemas parecidos com o produto das revoluções geradas pela visão irrestrita. Rene Girard dirá que o personagem que melhor ilustra o Katechon é o Grande Inquisidor que aparece numa história contada por Ivan Karamazov no romance Os Irmãos Karamazov de Fyodor Dostoievsky. O conto de Ivan se passa no século XVI, bem no auge da inquisição espanhola, na cidade de Sevilla. Um belo dia, Jesus Cristo aparece na cidade e começa a fazer milagres. O povo todo o reconhece imediatamente e começa a segui-lo, mas o Grande Inquisidor, que observava atento a situação, manda prendê-lo. À noite, nas masmorras, o sacerdote visita Jesus e começa a justificar o motivo da prisão. O grande problema do Inquisidor com Jesus foi o fato dele ter dado livre arbítrio para o homem mesmo sabendo o que boa parte da humanidade faria com ele. Para o Grande Inquisidor, Cristo teria respondido incorretamente às três tentações do Diabo no deserto. Primeiro, para ele, é evidente que Jesus deveria ter transformado pedras em pão. Imagine quantas pessoas ele não conseguiria “salvar” com esse feito? É fácil controlar as pessoas apelando a barriga. É fácil controlar as pessoas através de milagres, de grandes feitos e, portanto, o Inquisidor no lugar de Jesus teria se jogado do alto da torre para ser salvo pelos anjos. Espetáculos com esse impressionam e as pessoas querem ser impressionadas. Por fim, é claro que o Inquisidor teria se jogado aos pés do Diabo em troca de ganhar todos os reinos do mundo, afinal, com isso ele poderia instaurar a paz e a ordem no mundo. O Inquisidor, segundo Girard, consegue manter a paz e a ordem através da violência, do controle. Ele é necessário, pois as pessoas não são capazes de usar seu livre arbítrio.
A visão irrestrita, em sua ânsia por derrubar as barreiras artificiais que separam o homem da felicidade total, acaba buscando a concentração do poder para implementar o céu na terra. Como diria Eric Voeglin, ela busca “imanentizar o escathon”, trazer o final da escatologia cristã para o aqui e agora. Ela quer governar o homem em prol de um futuro promissor. A visão restrita, por outro lado, fará de tudo para controlar as paixões humanas, instituirá barreiras contra o caos. Como diria Girard, será o Katechon, aquele que restringe. Ela quer governar o homem em prol da manutenção do presente ao ponto do Grande Inquisidor, um sacerdote cristão, basicamente dizer para Cristo “veja bem, eu sei que o senhor disse que ia voltar, mas a gente tá segurando bem as pontas por aqui, acho que nem vai precisar, sabe?”18
IV. O Fim
O H.M.S Surprise triunfa sobre Acheron. No entanto, bem no final do filme, vemos que as aventuras de Jack Aubrey e sua tripulação não terminam. O conflito de visões também parece não ter fim. Esquerda e direita, progressistas e conservadores, Revolucionários e Katechons, Beemots e Leviatã seguem lutando pela hegemonia deste mundo. Teremos momentos em que o partido dos Katechons vencem mais eleições e momentos em que os Revolucionários conquistam o poder. No meio dessa batalha as forças da “necessidade implacável e da rebelião impotente”, como descreveu Olavo de Carvalho19, é indispensável que nos lembremos da oração do capitão. Rejeitemos a violência, seja da hübris revolucionária, seja da frieza do katechon. Há outro caminho e ele é a única forma de fazer o navio voltar para casa.
Eu estou perfeitamente ciente de que o princípio é em si mesmo uma ideia que foi expressa por alguém, no caso, eu mesmo e, portanto, o leitor se sentirá no direito de aplicá-lo ao próprio princípio. Esse é o problema de princípios que tem a pretensão de ter validade universal: a autorreferência. Preciso ser honesto e admitir que nada vai acontecer de muito grave comigo se eu estiver errado.
Comandantes de submarino talvez vençam essa disputa, mas, convenhamos, um submarino é apenas um navio que consegue submergir (e voltar a superfície, claro — essa é a parte mais importante, aliás. Todos os navios, em princípio, conseguem submergir, principalmente os ruins).
Thomas Sowell afirmou uma vez que o Conflito de Visões era talvez o seu livro favorito.
Backhouse, Roger E. The Ordinary Business of Life (p. X)
Milton Friedman, um adepto da visão restrita, argumenta justamente que “as políticas devem ser julgadas não por suas intenções, mas por seus resultados”.
Em um famoso vídeo, Sowell elenca as três perguntas que deveriam ser feitas na hora de comparar alternativas: 1) Comparado a quê? 2) Qual o custo? 3) Que indícios você tem para fundamentar?
Em tempo, o problema de “quem fará o quê?” após uma revolução socialista sempre me pareceu digno de uma esquete de Monty Python. Aliás, aqui vai um esboço:
[Townsquare of the capital.
Thousands gather to celebrate the great victory of the revolution.]
LEADER: "Very well, comrades. The revolution has been a resounding success. We have utterly vanquished the capitalist pigs.”
CROWD: “Huzzah!"
LEADER: "Yes, huzzah indeed, comrades. Our triumph is irrefutable. Now, onto the simpler tasks. Let's distribute the chores."
JOHN: "Chores?"
LEADER: "Yes, of course. The amount litter on my street is embarrassing, accumulating for months on end. Someone must clean it up… Hmm.. How about you, John?"
JOHN: "Oh? Me? Well, I'm not the best comrade for picking up litter, honestly. And if I must be completely honest, I had hoped to be entrusted with designing the uniforms or perhaps managing the party's social media accounts…"
LEADER: "Oh, really? This does put us on a tight spot, comrade John… You see, Gucci designed our uniforms already. True we had to shoot all the designers once they delivered the designs, you know, a capitalist with a keen sense of fashion is still a swine… But we have them now, we’re settle on the designs.
[Comrades in the crowd whispers and talk amongst themselves.]
SOMEONE [whispering to the person next to him]: “Oh Yes, yes… absolutely.”
LEADER: “And for the social media accounts… Do you really think you can do a better job than Google? Really?
[John seems reluctant to admit the obvious]
LEADER: “Come on comrade Johnny admit it…”
JOHN: “Well, yeah, I suppose I cannot… Alright…”
LEADER: “Johnny boy… The wipes are calling…”
JOHN: “Alright… Alright… For Lenin’s sake.”
LEADER: "That’s the spirit, comrade! Or should I say, “the matter”?”, the leader giggles at his own Marxist joke. Ok now, comrades, moving on, coal mines, anyone? Yes, I’m looking at you comrade Steve, don’t be shy now."
O mesmo vale para instituições que regem parte da vida em sociedade como, por exemplo, o casamento. O compromisso matrimonial entre o casal exige dos participantes a preferência estrita um pelo outro em todos os momentos do tempo (até que a morte os separe). Para adeptos da visão irrestrita, isso faz pouco sentido, pois seria pouco razoável supor que essa preferência seja racional sempre. A visão restrita parte do pressuposto que a capacidade do ser humano conhecer é severamente limitada e que, portanto, é mais importante garantir o bom funcionamento de processos sociais e o casamento é uma forma de regular um processo extremamente importante, do qual depende a sobrevivência da espécie.
Algumas pessoas atribuem o sucesso da marinha inglesa ao fato do sistema de promoções dos oficiais ser uma função de mérito, em oposição a mera patronagem. Enquanto no exército inglês era possível comprar postos militares, na marinha isso ocorria com menos frequência. No século XIX, durante as guerras napoleônicas, o posto de oficial mais baixo era o de Aspirante (Midshipman). Para conseguir ascender ao posto de Tentene (Lieutenant) eram necessários três anos atuando como Aspirante e seis anos de experiência no navio. Uma vez cumprido o requisito de experiência, os Aspirantes precisavam fazer um exame de admissão para o posto de Tenente. A maior parte dos Aspirantes era extremamente jovem para o padrão atual, muitos começavam com quinze, quatorze, até mesmo treze anos de idade e, portanto, estavam aptos a fazer o exame e assumir o novo posto antes dos vinte anos.
Hollom está para o Mestre dos Mares assim como o cabo Upham está para o Resgate do Soldado Ryan. A diferença é que Hollom tem um pouquinho mais de dignidade.
Sowell, Thomas. A Conflict of Visions: Ideological Origins of Political Struggles (p. 97). Basic Books. Edição do Kindle.
Sowell, Thomas. A Conflict of Visions: Ideological Origins of Political Struggles (p. 84). Basic Books. Edição do Kindle.
O Marxismo é híbrido, segundo Sowell, pois ao mesmo tempo em que Karl Marx defende o materialismo histórico — segundo o qual o comportamento dos indivíduos é determinado pela classe social em que ele se encontra —, sua proposta política é revolucionária e envolve a tomada e concentração do poder nas mãos de um grupo para organizar a sociedade perfeita, onde todos os seres humanos serão livres para atingirem seus potenciais. O materialismo histórico seria uma visão restrita do homem, enquanto a prescrição política entraria na visão irrestrita. Mais ainda, a própria ideia de que um homem (Marx) poderia tirar o véu da realidade, descobrir a chave de todos os processos históricos e ainda por cima enunciá-los racionalmente em livros já exige uma fé heroica na capacidade do homem, ou, pelo menos de um homem.
Sowell argumenta que a lógica de Marx é consistente, pois a teoria marxista prevê que em cada nova etapa da história o homem adquire cada vez mais autonomia para desenvolver seu potencial, logo, o homem teria sido “determinado ou limitado a ser, após um monte de lutas de classes, ilimitado”. Eu, no entanto, acho que a teoria marxista é inconsistente mesmo. Como diz o filósofo Olavo de Carvalho, Marx não poderia existir num mundo em que a teoria marxista fosse verdadeira, pois ele, enquanto filósofo e ativista político, não agiu segundo sua classe social o determinaria a agir. Pior ainda, se Marx contasse a um burguês que ele descobriu a lógica da história da humanidade, este burguês certamente trataria de desparecer com o barbudo ao invés de ajudá-lo (e deve ser por isso que Engels provavelmente não ganhou o “prêmio burgueses destaque do ano”. Engels é um “vacilão”.). A única parte que importa do Marxismo é a práxis, ou seja, é o ativismo político, a revolução, a tentativa de mudar o mundo. A teoria que justificava a ação, no fundo, é apenas isso, uma justificativa. Aqui cabe uma citação do melhor livro de Roger Scruton:
There is a kind of theological cunning in this aspect of Marx’s thought. Since the class-theory is a genuine science, bourgeois political thought is ideology. And since the class-theory exposes bourgeois thought as ideology, it must be science. We have entered the magic circle of a creation myth. Moreover, by dressing up the theory in scientific language Marx has endowed it with the character of a badge of initiation. Not everybody can speak this language. A scientific theory defines the elite that can understand and apply it. It can offer proof of the elite’s enlightened knowledge and therefore of its title to govern. It is this feature that justifies the charge made by Eric Voegelin, Alain Besançon and others that Marxism is a kind of gnosticism, a title to ‘government through knowledge’.
Here, then, is the perfect totalitarian ideology: a pseudo-science that justifies and recruits resentment, that undermines and dismisses all rival claims to legitimacy and that endows the not quite successful with the proof of their superior intellectual power and of their right to govern. The Marxian ideology provides the frustrated intellectual with the power that he needs: the power of his own resentment, which echoes and amplifies the resentment of a victim class.
Scruton, Roger. A Political Philosophy: Arguments for Conservatism (p. 153). Bloomsbury Publishing. Edição do Kindle.
Aliás, enquanto eu estava escrevendo esse ensaio o substack Livre Arbítrio fez um post muito interessante em que ele explica esse conceito.
Essa mensagem está hermeticamente contida até mesmo no livro de Jonas. No livro, Deus resgata o profeta insubordinado do fundo do mar, de dentro de uma baleia, para que ele complete sua missão e, com ela, a redenção.
Ou, como diria Dwight Schrute: "Melhor que 1.000 homens inocentes sejam presos do que um homem culpado fique livre.”
Peter Thiel é um bilionário estudioso de Rene Girard que parece entender o problema. Essa conversa com o economista Tyler Cowen é sensacional. Também existe, é claro, o seu clássico “The Straussian Moment”, o qual recomendo a todos que leiam.
… não é ao homem, nem a Behemot, que cabe subjugar o Leviatã. Só o próprio Deus pode fazê-lo. A iconografia cristã mostra Jesus como o pescador que puxa o Leviatã para fora das águas, prendendo sua língua com um anzol. Quando, porém, o homem se furta ao combate interior, renegando a ajuda do Cristo, então se desencadeia a luta destrutiva entre a natureza e as forças rebeldes antinaturais, ou infranaturais.
(…)
Furtando-se ao combate espiritual que o amedronta, mas que poderia vencer com a ajuda de Jesus Cristo, o homem se entrega a perigos de ordem material no cenário sangrento da História. Ao fazê-lo, move-se da esfera da Providência e da Graça para o âmbito da fatalidade e do destino, onde o apelo à ajuda divina já não pode surtir efeito, pois aí já não se enfrentam a verdade e o erro, o certo e o errado, mas apenas as forças cegas da necessidade implacável e da rebelião impotente. No plano da História mais recente, isto é, no ciclo que começa mais ou menos na época do Iluminismo, essas duas forças assumem claramente o sentido do rígido conservadorismo e da hübris revolucionária. Ou, mais simples ainda, direita e esquerda.
A Nova Era da Revolução Cultural p. xx